75 anos depois da inauguração da primeira universidade pública e gratuita, instituições argentinas enfrentam dificuldades com cortes orçamentários

Texto por Gabriela Varão*
No ano em que a Argentina comemora 75 anos da gratuidade universitária, instituída em 1949 no governo de Perón, as instituições do país enfrentam dificuldades financeiras para se manter. Desde que foi eleito, o presidente Javier Milei adotou políticas de corte de gastos públicos, previstas no “Plano Motosserra”, com o objetivo de equilibrar as contas públicas e controlar a inflação do país, que ficou em 2,7% no mês de outubro, segundo o Índice de Preços ao Consumidor (IPC), divulgado pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) da Argentina.
De acordo com um relatório do Observatorio de Argentinos por la Educación (OAE), o orçamento destinado à educação foi reduzido em 40% entre 2023 e 2024. Nas universidades, a redução atingiu 31%, segundo o Centro Ibero-americano de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Inovação (CIICTI). Em abril, a Universidade de Buenos Aires (UBA), uma das maiores da Argentina, decretou situação de emergência, declarando que não sabia se teria condições de continuar no segundo semestre, sem recursos para arcar com serviços básicos, como luz e gás.
A situação teve impacto nacional e internacional imediato. Milhares de estudantes foram às ruas protestar contra os cortes orçamentários e diversas universidades brasileiras expressaram sua solidariedade às instituições argentinas, como a USP, a Unicamp e a Unesp. Apenas após a pressão, uma nova negociação com o governo garantiu o orçamento necessário para o funcionamento operacional da UBA.
Em agosto, a Câmara de Deputados aprovou a Lei de Financiamento Universitário, redigida pela deputada Danya Tavela do partido União Cívica Radical (UCR). A proposta previa um aumento no salário de docentes para compensar a inflação e um reajuste no orçamento universitário. No mês seguinte, a medida foi aprovada na votação do Senado, mas acabou sendo vetada pelo presidente. Com 160 votos contra, 85 votos a favor e 5 abstenções, o veto foi ratificado em outubro no Congresso. Apesar de serem maioria, os votos da oposição não alcançaram os dois terços necessários para derrubar o veto de Milei.
Um dos maiores desafios da economia argentina é a dívida pública e externa. Parte dessa dívida é resultado de um empréstimo de 45 bilhões de dólares concedido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) durante o governo do ex-presidente Mauricio Macri. Quando Milei assumiu a presidência em dezembro do ano anterior, o país tinha 21 bilhões de dólares em reservas, valor insuficiente para quitar a dívida.
Osvaldo Coggiola, historiador argentino e professor da USP, explica que, como forma de resolver a crise, “em vez de Milei atacar os lucros extraordinários dos titulares da dívida externa e os juros praticamente obscenos que recebem esses títulos da dívida pública, ataca tudo que a Argentina construiu em mais de dois séculos de existência, as empresas estatais e, principalmente, a escola e a universidade pública”.
Choque institucional
Graças à Reforma Universitária de 1918, as instituições de ensino superior argentinas não possuem exame de ingresso, possibilitando maior democratização da educação pública. As medidas de austeridade de Milei comprometem um sistema educacional que há anos segue com a tradição de oferecer educação pública e gratuita para toda população, fazendo reajustes salariais abaixo da inflação, que acumulou um aumento de 193% em 12 meses. Segundo dados do Centro Ibero-americano, o salário dos docentes das universidades nacionais diminuiu 25,1% entre dezembro de 2023 e setembro de 2024. Essa quantia equivale a três meses de salário.
Os efeitos da redução do orçamento se refletiram no Ranking Regional Universitário de 2024, feito pela revista britânica Times Higher Education (THE). Nesta edição, nenhuma universidade argentina ficou entre as 10 melhores da América Latina.
“Milei ataca tudo que a Argentina construiu em mais de dois séculos de existência, as empresas estatais e, principalmente, a escola e a universidade pública”
Osvaldo Coggiola, historiador argentino e professor da USP
Na Universidade Nacional de Entre Rios (UNER) de Gualeguaychú, os docentes da Faculdade de Bromatologia (FB) relatam impacto no poder aquisitivo. “Na Argentina, uma situação particularmente persistente é o fenômeno da inflação. Com os aumentos acumulados de preços, temos uma perda constante do nosso poder de compra”, conta Diego Zanetti, professor de comunicação dos cursos de Nutrição e Veterinária e conselheiro diretivo da universidade.
“O que o corte orçamentário faz é reduzir a capacidade da universidade de investir em insumos, materiais, bolsas de estudos e em qualquer tipo de equipamento que poderíamos considerar como uma melhoria”, critica Diego. Em relação às pesquisas, o professor também revela um cenário desfavorável: “A maioria dos projetos de pesquisa estão tentando terminar o ano como podem. Os reagentes que são usados em laboratórios, por exemplo, não podem mais ser pagos, então usam o que está disponível, fazem improvisações ou cancelam.”
O Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET), órgão responsável pela promoção de pesquisas em torno de tecnologia e ciência no país, teve uma diminuição na quantidade de pesquisadores pela primeira vez em duas décadas. Em 2024, 1055 pessoas deixaram o CONICET, entre elas 598 pesquisadores e 457 bolsistas e funcionários administrativos. Esta redução é um resultado da diminuição do número de empregos no setor público, que registrou uma perda de mais de 2 mil empregos entre dezembro de 2023 e setembro de 2024, conforme relatório do Centro Ibero-americano.
Com o sucateamento das instituições de ensino e pesquisa, muitos pesquisadores estão deixando o país. “O sistema universitário brasilero ou o sistema universitário chileno, que têm capacidade de pagar salários maiores podem acabar importando pesquisadores argentinos para trabalhar em seus países”, afirma Diego.
Para amenizar as consequências da redução do orçamento, o professor diz que a UNER está migrando parte de suas atividades para o formato virtual. “Algumas aulas foram pelo [Google] Meet ou Zoom, há matérias que simplificaram os trabalhos práticos de laboratório. Hoje, e isso acontece na Faculdade de Bromatologia, há disciplinas que anularam certas questões para não gerar gastos”, comenta.
*Com edição de Marcelo Teixeira