
Texto por Beatriz Haddad e Gabriel Carvalho*
Em 2014, a USP passou por uma grave crise financeira que fez com que a instituição paralisasse por completo a contratação de funcionários e docentes, incluindo a substituição de pessoal aposentado ou demitido. O gatilho automático, que permite a abertura imediata de concursos para professores, já havia sido extinto em 2011. Até então, a Universidade tinha 80% do seu orçamento comprometido com a folha de pagamento dos funcionários, e os outros 20% destinados a investimentos. No ano da crise, no entanto, o gasto com funcionários chegou a 105% do orçamento, acarretando em uma perda bilionária na reserva da Universidade.
No livro Universidade em Movimento: Memória de uma Crise, o professor catarinense Alexandre Sassaki aponta o aumento no quadro de funcionários, as movimentações de carreira dos servidores técnico-administrativos e a ampliação do número de benefícios (vale-alimentação e refeição) como principais causas para o desequilíbrio nas contas, e recomenda um controle mais rígido e centralizado das despesas da Universidade, além da criação de uma unidade de monitoramento independente. A obra de 2017, que conta com a participação de diversos outros pesquisadores, também recomenda a adoção de medidas de austeridade fiscal e a instituição de um teto de gastos.
À época, sob a gestão de Marco Antônio Zago (2014-2018), a USP foi a beneficiária de um plano de ação para implementar novos modelos de captação de recursos e de gestão administrativa, buscando contornar a crise. Com o nome de USP do Futuro, o projeto foi financiado por empresários, ex-alunos da Universidade, ligados à Comunitas, organização especializada em gestar parcerias público-privadas. A realização do projeto ficou a cargo da consultoria norte-americana McKinsey & Company.
O relatório final dos levantamentos feitos pela empresa – que só veio a público após uma sequência de denúncias da Associação de Docentes da USP (Adusp) – aponta uma série de medidas a serem tomadas para tornar a Universidade “economicamente sustentável”, que incluem planos massivos de terceirização de serviços, demissão voluntária de funcionários, desvinculação de hospitais e moradias estudantis e forte incentivo a parcerias com empresas privadas.
A reação contrária às resoluções do relatório fez com que a USP divulgasse nota oficial dizendo que havia acatado apenas três das medidas propostas, como a criação do Inova USP (laboratório interdisciplinar), do Programa de Mobilidade e Integração Urbana e do Fundo Patrimonial da USP (FP-USP). O fundo foi lançado em 2020, durante a gestão de Vahan Agopyan – que havia sido vice-reitor durante a gestão Zago – e reúne recursos comumente vindos de doações particulares em um fundo de investimentos, cujos rendimentos ficam disponíveis para o uso da instituição beneficiária.
O modelo adotado ainda é incomum no Brasil, onde apenas nove universidades apresentavam um fundo no ano em que o da USP foi lançado, mas é amplamente utilizado por universidades particulares e públicas dos Estados Unidos. Uma das críticas expostas pela Adusp, ao revelar o relatório da McKinsey, foi justamente a comparação equivocada da USP exclusivamente com instituições estadunidenses, tendo em vista que, em nenhum momento, houve comparação com outras instituições brasileiras, públicas ou privadas.
Para Brandão, a proximidade do capital privado com o financiamento de pesquisa em instituições públicas levanta um alerta: “Permitir isso é subordinar a pesquisa ao interesse privado”. Atualmente, o FP-USP conta com R$59 milhões, vindos de nove doadores. A maior contribuição, feita em julho deste ano, é de Stelio Marras, antropólogo e professor formado pela USP, que doou um imóvel avaliado em cerca de R$25 milhões para financiar pesquisas na USP.
Terceirizações
A interferência do capital privado não ficou restrita apenas aos setores de pesquisa. Grande parte dos Restaurantes Universitários (RU’s), os bandejões também enfrentaram processos de mudanças estruturais nos quadros empregatícios – como o congelamento de contratações e o Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), que resultou na perda de mais de 2.800 funcionários – e foram passados para a administração de empresas privadas. As consequências dessa concessão foram sentidas diretamente pelos terceirizados dos restaurantes, inicialmente proibidos de se alimentar dentro dos bandejões e de usufruir de outros espaços, como os vestiários, direitos esses garantidos aos efetivos. Em reportagem da Adusp após a proibição de tais direitos, funcionários efetivos se posicionaram contra o que chamaram de “segregação” dos terceirizados, exigindo condições dignas e igualitárias para ambas as categorias.
No campus da Cidade Universitária, os bandejões da Química, Prefeitura e Física são terceirizados – este último o mais recente a ter passado pelo processo, em 2019. O RU Central é o único que ainda não foi completamente concedido, mas a sua sala de louças (setor de limpeza dos utensílios do bandejão, descrito por trabalhadores como uma das tarefas mais exaustivas) é gerida por terceiros.
Para além da concessão dos restaurantes universitários, foi proposta, ainda na gestão Zago, a desvinculação do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC) e do Hospital Universitário (HU), sob justificativa de que a Universidade não tinha condições de gerir os órgãos. Mesmo com forte resistência, o HRAC teve a administração transferida ao governo do Estado em 2022, e sua gerência foi designada à instituição privada Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (Faepa).
Recentemente, outro hospital da USP teve parte das funções cedidas para fins privados. Em 2023, a Faculdade de Medicina da USP criou o HC Experience, programa que permitia que alunos de medicina de qualquer instituição do país realizassem residência no Hospital das Clínicas, em troca de uma mensalidade de mais de R$8 mil.
Segundo Pedro Pomar, editor da Revista Adusp e autor de parte das denúncias sobre o projeto USP do Futuro e das relações entre a Universidade e instituições particulares, o que se intensificou durante a gestão Zago e continua até a atual gestão de Carlos Carlotti é um projeto de precarização da instituição em prol de interesses privados: “o plano é transformar a USP em uma universidade empresarial”.
“A USP viu que já não tinha como negar o envolvimento crescente com o grande capital. Agora, tudo é rotulado como ‘empreendedorismo’”, o jornalista explica o jornalista a respeito das fundações de apoio da Universidade. “O que acontece é isso, é a cessão de bens públicos, de espaço público, de dinheiro público, ao interesse privado.”
*Com edição de Diego Facundini