Quem são os fetichistas da Praça do Relógio?

Texto por Alícia Matsuda*

Segunda-feira chuvosa. Era meu primeiro dia de aula na USP. Em busca de abrigo, escorregava pelo corredor frente ao Bandejão Central até me refugiar na antessala do Diretório Central dos Estudantes (DCE). No chão quase empoçado, se desembaralhavam meia dúzia de silhuetas. Cordas amarravam coxas a tornozelos, desenhando borboletinhas libertinas com as pernas enlaçadas. Era a primeira sessão de Atados na USP do ano.

Aquelas pessoas praticavam Bondage – a restrição de movimentos para fins sensoriais, estéticos e eróticos que, somada a Disciplina, Sadismo e Masoquismo, alicerça a subcultura BDSM. Um dos pioneiros no Brasil, o grupo posiciona a USP ao lado de Harvard entre as 55 universidades ao redor do mundo com clubes fetichistas organizados. Antes de laçar estudantes de todo o campus, a ideia surgiu dentro da Rateria, bateria universitária da Escola Politécnica (EP), no fim de 2021. “O grupo, enquanto era Poli, era basicamente eu. E eu sabia que a melhor forma de tornar o grupo existente era a validação no imaginário coletivo da USP”, relembra o fundador Joás Barbosa.

Hoje estudante da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), Joás notou que “havia uma necessidade de um grupo de estudos voltado à sexualidade, para dar algum meio de educação sexual para adultos, já que ninguém teve na infância”. As bases teóricas do aprendizado, entretanto, perdem espaço para a prática, esta que testemunho quase toda sexta-feira, às 15h, cruzando a Praça do Relógio. Uma das praticantes do grupo me diz: “Interesses divergentes de sexualidade tendem a aparecer na nossa vida, e a forma com que a gente lida com eles costuma ser a maior violência. A gente patologiza a partir do que conhece, e a gente mal tem educação para sexualidade baunilha”, isto é, o sexo convencional, com o sabor menos apimentado possível.

Os encontros semanais do USP BDSM se derivam das reuniões do Atados no Parque, organizados mensalmente em diferentes cidades. Do Ibirapuera ao Central Park, membros da comunidade fetichista praticam ao ar livre o shibari, técnica japonesa de imobilização que data do século 17. Após quase 400 anos, os nós dados pelos samurais foram erotizados, e as amarrações conquistaram o universo Kink, no qual prosperam as fantasias sexuais dissidentes. Para garantir a segurança de práticas como o shibari, parâmetros são pré-estabelecidos em uma série de lemas. Os fetichistas listam as siglas: Seguro, São e Consensual (SSC), Kink Consensual Ciente dos Riscos (RACK), Cuidado, Comunicação, Consenso e Cautela (4Cs), e Kink Consensual Informado com Responsabilidade Pessoal (PRICK).

Mas, quando se trata de sexualidade subversiva, obedecer princípios nem sempre apetece. Um dos membros do USP BDSM admite, um tanto contrariado: “Fui percebendo que isso não ia cobrir exatamente tudo que precisava. Práticas como a minha não entram no São, Seguro e Consensual.” O biólogo é adepto do ballbusting: “Chute no saco. Soco. Qualquer coisa relacionada à tortura genital”. Assim como entusiastas de chuva dourada e scat – urina e fezes no sexo, ele lamenta o preconceito sofrido dentro da própria comunidade, e conta praticar a parafilia fora de contextos fetichistas ou sequer sexuais. Dentro de um relacionamento baunilha, ele satisfaz essa vontade entre colegas, mais interessado na adrenalina dos novos envolvidos na agressão do que no teor erótico em si. “A prática sempre tem algum risco. A pessoa tem a responsabilidade e a consciência de entender, avaliar, aceitar e tentar reduzir esses riscos.”

Discreto dentre os 84 membros do USP BDSM, o masoquista não conta que já foi moderador de páginas fetichistas com milhares de participantes, número que multiplicou com o fenômeno 50 Tons de Cinza (2011). A história do sadomasoquista Christian Grey bombou na mesma época que emergia, às escondidas, o Kinkusp, coletivo focado no ensino e estudo de fetiches entre os universitários. Antes mesmo da pandemia, o seleto grupo desapareceu no mesmo silêncio em que surgiu: “O USP BDSM utilizou da gritaria para garantir sua existência, enquanto o Kinkusp era praticamente secreto”, diz Joás Barbosa.

Enquanto porta de entrada para curiosos no BDSM, livros, filmes, fanfics e pornôs popularizam relações de dominação e submissão sem nenhum compromisso com a segurança. Uma das atuais administradoras do grupo uspiano evoca o abuso de poder representado no sucesso 365 Dias (2020), em que a protagonista é sequestrada por um dominador ao longo de um ano. “De tudo que o filme poderia falar, ele resolveu não contar o que, pra gente, é o mais importante: que é necessário consentir de cara limpa, sem pressão”, aponta no documentário que ela mesma produziu sobre o USP BDSM.

Atados em campo, eles defendem que o fetiche nem sempre é inerente ao sexo. “Nos primeiros pornôs que eu via, eu achava que não estavam fazendo nada de sexual. Porque eu só me conectava com pornografia fetichista e não entendia que tinha contato algum com a sexualidade”, me conta uma participante do grupo, que estuda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU), mas pretende abraçar a carreira artística na próxima transferência para a Escola de Comunicações e Artes (ECA). “Falta conteúdo BDSM que seja propriamente BDSM. Que mostre as pessoas conversando sobre os interesses delas, que mostre a sessão e a coisa mais importante, que é o aftercare.” Para explicar o processo, ela imagina uma aula de ioga, que acaba na savasana, ou postura do cadáver: “Depois de criar uma dinâmica de poder entre as pessoas, tirar um tempo significativo para voltar à posição horizontal e cuidar de todas as suas partes que podem ter vindo à tona e que você não quer andar com elas por aí”.

Foi há um ano, no primeiro encontro geral do Coletivo Autista da USP (Causp), que a estudante conheceu o grupo de BDSM. Joás circulava entre as duas rodas na Praça do Relógio, por vezes instigando membros de uma a se interessarem pela outra. Ela relembra as descobertas dos últimos meses: “Fui conhecendo tudo junto e, quando eu vi, a maior parte das pessoas neurodivergentes que eu conhecia eram kinky, e a maior parte dos kinky que eu encontrava em situações diferentes eram neurodivergentes”. Além de ter se entendido como lésbica, neste período ela explorou sua expressão sexual nos jogos de poder: enquanto brat, quando a dominação é imposta frente à desobediência às ordens, e enquanto little, quando sua submissão é cedida dentro do ageplay – fantasia em que se encena ser pequeno sob os cuidados de um tutor. Ela explica: “A própria satisfação não necessariamente é física, às vezes é psicológica, às vezes é um prazer estético, um interesse profundo da exploração erótica de formas mais abrangentes”.

Apesar da cumplicidade nas trocas de experiências, os integrantes  apontam que o USP BDSM não se consolidou como um ambiente dos mais acolhedores. “Eu comecei a ficar com vergonha”, relembra uma ex-participante, que se afastou do Atados na USP pela distância com os outros membros, mais próximos entre si. “Na hora que você está no meio de uma sessão de BDSM, dá pra ver isso pelo jeito que a pessoa amarra e pelas firulas que ela faz”. Foram as relações pessoais que fizeram Joás, o fundador, sair do próprio grupo. Dentre os que ficaram, pipocam críticas quanto à estratificação do núcleo administrativo. “Ali, a dominação e a submissão são bem marcadas, e a coisa mais comum do BDSM é ter essa relação hierárquica, mas sou contra ela se expandir para fora da sessão”, advoga um dos membros atuais.

*Com edição de Julia Alencar