USP ameaça estudantes de expulsão após informe pró-Palestina

Processo é baseado em normas disciplinares criadas durante a Ditadura Militar

Estudantes se mobilizam em um ato pró-Palestina. Foto: Gabriel Carvalho/JC

Texto por Diego Facundini e Gabriel Carvalho*

Cinco estudantes estão sendo processados pela USP após um informe sobre a situação humanitária na região da Faixa de Gaza, feito em meio à greve discente de 2023, e podem ser expulsos sob a acusação de “discurso de ódio”. A declaraçãoocorreu durante uma assembleia estudantil do Curso de Ciências Moleculares (CCM), que recebeu representantes do movimento ESPP (Estudantes em Solidariedade ao Povo Palestino) para uma fala-denúncia sobre o processo de ocupação israelense na região. A moção, aberta em novembro do mesmo ano, utiliza artigos do regimento disciplinar da USP redigidos durante a ditadura. 

Segundo o informe, o Estado de Israel praticava “uma política de genocídio fascista, colonialista e racista” contra os palestinos, e os eventos do recém ocorrido 7 de outubro representavam “uma ofensiva histórica contra o colonialismo israelense”. Entre os acusados, três são alunos do CCM. A denúncia veio inicialmente da coordenadora, Merari Ferrari, junto a mais dois professores do curso, Alicia Kowaltowski e Paulo Nussenzveig – que também é pró-reitor de pesquisa e inovação.

O Processo Administrativo-Disciplinar (PAD), que ocorre em sigilo, foi instaurado pela Pró-Reitoria de Graduação, sem sindicância prévia – segundo a acusação, o material de denúncia foi enviado diretamente à Procuradoria Geral USP –, e submete os acusados a sanções previstas no Regime Disciplinar. Criado durante o período mais repressivo da Ditadura Militar, já foi julgado em partes como inconstitucional pela própria PG-USP. Entre as infrações citadas no processo, constam “praticar ato atentatório à moral ou aos bons costumes” e “promover manifestação ou propaganda de caráter político-partidário”.

Dos Anos de Chumbo

O Regimento Disciplinar da USP foi instituído em 1972, durante a vigência do A.I.5., e persiste até os dias de hoje. Mesmo com a aprovação do Regimento Geral de 1990, em vigor, as normas disciplinares puderam permanecer intactas sob o título de “Disposições transitórias”. De acordo com o documento, “Enquanto não for aprovado o novo regime disciplinar pela CLR [Comissão de Legislação e Recursos], permanecem em vigor as normas disciplinares estabelecidas no Regimento Geral da USP [de 1972]”.

Dentre as determinações, as mais graves se encontram no artigo 250, que descreve as infrações passíveis de sanção (como expulsão). Os incisos, citados no PAD, falam em “praticar ato atentatório à moral ou aos bons costumes” (IV), “perturbar os trabalhos escolares bem como o funcionamento da administração da USP” (VII) e “promover manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares” (VIII).

Este último, que sanciona o direito à greve, já foi julgado como inconstitucional pela Procuradoria Geral da USP por meio do parecer PG 2374/2012. O JC contatou a PG-USP em busca do conteúdo deste parecer, que não se encontra em nenhuma base de dados on-line da Universidade, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.

Em 2011, durante a gestão do reitor João Grandino Rodas, seis estudantes foram expulsos da Universidade após um ato que ocupou a reitoria em um processo baseado nessas mesmas normas, e apenas alguns foram reintegrados após decisões judiciais.

Hoje, para manter tal regimento, a USP ignora sua própria Comissão da Verdade (CV-USP). Na quinta recomendação, o relatório final da CV-USP, publicado em 2018, diz: “adequar o Regimento Geral da Universidade, quanto a sanções disciplinares para o corpo docente e o corpo discente, a fim de compatibilizá-lo com a gestão democrática do ensino, princípio integrante da Constituição Federal”.

Perseguição política

“Esse processo tem um nascedouro autoritário”, diz Maira Pinheiro, advogada de defesa dos alunos. Para ela, o PAD representa uma perseguição contra estudantes engajados no movimento estudantil feita pela coordenação de um curso com regras exclusivas, imerso em irregularidades: “essa alegação infundada de antissemitismo acabou se mostrando a desculpa perfeita para uma perseguição que já era anunciada.”

A declaração faz coro com a fala de Marina Alves, aluna do CCM, na reunião do Conselho Universitário (CO) do dia 12 de novembro, no qual questionou o comitê sobre o caso e exigiu a retirada da denúncia. Marina recordou 2022, quando alunos do curso foram punidos com advertências disciplinares após organizarem manifestação contra cortes de orçamento para a educação, e afirmou: “repetidas vezes, esse excepcionalismo que o CCM tem permite flexibilizações na burocracia da própria Universidade.”

Em resposta, o pró-reitor de graduação Aluisio Segurado afirmou que o processo contra os cinco alunos “foi instaurado após o recebimento de um farto material de denúncia de comportamentos que não estão de acordo com o código de ética da USP”. Questionado pelo JC sobre tal material, disse que as informações contidas nos autos “devem seguir sob sigilo”, visto que o processo ainda não foi concluído. Aluísio, além de liderar a pró-reitoria  que conduz o processo, também é presidente da comissão de graduação do CCM.

Paulo Sérgio Pinheiro, relator na ONU em casos de violações de direitos humanos e membro da Comissão Nacional da Verdade, discorda que o informe configure ato de antissemitismo. “Não há no texto nenhuma manifestação de ódio contra qualquer grupo humano por origem ou religião. Essas acusações e ameaças de expulsão aos estudantes parecem ter como objetivo silenciar a crítica a Israel e ao sionismo.”

Para o cientista político, os que promovem essa definição de antissemitismo contribuem para o governo israelense fugir da responsabilização por suas violações de direitos humanos e do direito internacional. “Esta prática tem sido empregada em muitos países para suprimir a defesa e a liberdade de expressão nas Universidades”, diz. Ele complementa afirmando que o tema tratado pelos alunos foi objeto de estudo de diversas organizações internacionais.

As relações da USP com Israel têm sido alvo frequente de críticas por parte do movimento estudantil. Hoje, a Universidade possui convênios com três instituições de ensino israelenses diferentes, além de abrigar o “Israel Corner”, espaço feito em parceria com o Consulado Geral de Israel em SP dentro da Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional (AUCANI).

O advogado constitucionalista Henderson Fürst reforça que todo processo administrativo deve respeitar e se pautar pela constituição federal: “deve-se observar que existe um direito à liberdade científica, um direito à liberdade de expressão e também os limites que há nessas liberdades propriamente ditas.”

O JC contatou a Comissão de Legislação e Recursos para saber por que, até hoje, as normas do regime disciplinar ainda não foram atualizadas, como recomendado pela Comissão da Verdade, mas não obteve resposta até o fechamento dessa reportagem.

O PAD contra os cinco estudantes segue em andamento. A defesa pede a absolvição de todos os acusados.

*Com edição de Marina Giannini