Amanda (nome fictício), em depoimento a Gabriela Barbosa*

Segunda-feira, três da tarde. Preciso me arrumar pra faculdade. Olho a previsão do tempo no celular e vejo que faz 30° C. Quero colocar um shorts, mas e depois?
Após um dilema entre segurança e conforto, escolho vestir uma calça. Tenho que pensar em cada detalhe, afinal, a gente nunca sabe o que vai acontecer na rua. Os olhares que já recebi quando estava de shorts na rua voltam à minha cabeça, mas tento despistá-los logo. Não tenho tempo para isso
Depois do caminho de sempre, chego nos belos portões da Universidade de São Paulo. Já faz quatro anos, mas ainda me impressiono com a beleza desse lugar, com as árvores e o movimento de alunos, professores, funcionários e até crianças. Que lindo!
O fim da tarde de outono traz consigo uma bela vista do pôr do sol. Me sinto tão feliz por estudar aqui, como se todo o esforço valesse a pena. Pena que há o depois. O depois sempre aparece.
Assisto à aula normalmente, mas começo a ficar angustiada. Já são dez da noite e a professora não fez nem menção de terminar o conteúdo. Às 22h10, já parei de prestar atenção na matéria. “Preciso ir embora” é o único pensamento que me vem à cabeça. E se eu não chegar no ponto a tempo? E se eu perder o último trem?
Finalmente consigo sair da sala às 22h45. Vejo o ponto lotado de estudantes querendo ir para casa, mas o circular ainda vai demorar dez minutos para passar, segundo o aplicativo. Estou suada, passei calor o dia todo por causa da calça, me arrependi amargamente de não ter escolhido o shorts.
O circular, como esperado, está lotado. Subo e, depois de vinte minutos de pura humilhação e zero espaço pessoal, finalmente chego ao metrô. Coloco meus fones e vou sentido estação da Luz. Esse ainda é o começo do caminho, mas já estou muito cansada.
A viagem até lá é tranquila; a linha amarela sempre fica cheia de estudantes, então me sinto segura. Quando desço na estação final, tudo parece meio sombrio. Já passa das 23h40, eu preciso correr.
Alarmando os seguranças, saio correndo na estação e consigo chegar, ofegante, na plataforma da linha 11 Coral em três minutos; meu recorde. Por pouco, pego o último trem, às 23h50. Quando ele abre as portas, percebo que está mais vazio do que nunca; faz até eco.
Foi então que fiquei tensa. Um homem alto, forte e claramente alcoolizado entra no vagão.
Ele não mexe fisicamente comigo, mas todos os meus músculos começaram a tensionar, como se estivessem projetados para me proteger de qualquer aproximação. Sinto uma onda de medo e desconfiança me consumir.
Se esse homem tentar uma aproximação, devo ser simpática para não irritá-lo ou grossa para afastá-lo de vez? E se ele passar dos limites? Será que alguém correria para me salvar? Me sinto tão solitária e vulnerável nesse momento.
Lembro da minha escolha antes de sair de casa e agradeço pela calça.
Me sinto aliviada quando o vagão vai ficando mais cheio depois de algumas estações, mas fico de olho em qualquer movimentação suspeita. Estou lutando bravamente contra minhas pálpebras, que parecem pesar uma tonelada.
Sem perceber, tiro um cochilo rápido. Vários flashes começam a aparecer em minha cabeça. Bebida, pernas e braços grandes, alguém prendendo meu corpo, me forçando a fazer coisas que não quero.
Aquele homem bêbado preenche meus sonhos tão curtos e eu acordo num pulo, completamente assustada. Olho ao redor, nada mudou. Ele continua parado, quieto. Os outros ainda estão no mesmo lugar, não se surpreendendo com meus movimentos bruscos.
Já faz mais de vinte minutos, e a viagem pela linha coral não está nem na metade ainda. Quando eu começo a ficar relaxada novamente, recebo uma notícia impactante: minha mãe não poderia me buscar na estação. Terei que pedir um Uber.
Minha cabeça fica a milhão novamente. Sei que terei que dividir o carro com um homem, e sei que isso não é positivo. Tento lembrar de vários métodos de defesa pessoal que já aprendi – e já usei – na minha vida.
Sinto um arrepio percorrer minha espinha ao lembrar de um fatídico dia quando me senti ameaçada por um motorista. Senti que o homem estava borrifando um líquido no ar, e pensei que desmaiaria naquele momento. Abri uma fresta no vidro, tentando não me sufocar, e deixei alguns fios de cabelo espalhados no banco, para que alguém pudesse rastrear o meu DNA caso o pior acontecesse. No final, cheguei em casa normalmente aquele dia, talvez o líquido nunca tenha existido, mas o meu medo foi muito real. Desde então, redobro a atenção ao pedir um Uber.
Finalmente chego à minha estação, Suzano, depois de cerca de uma hora. O local é bem iluminado, mas pouquíssimas pessoas passam por lá tão tarde da noite. Temo que, a qualquer momento, serei atacada nessa estação.
Depois de muita insistência, um motorista finalmente aceita a corrida, mas ele ainda vai demorar 15 minutos. Não me sinto segura nesse local, mas sei que não há nenhum melhor.
Finalmente, o carro chega. Seguro minha mochila com mais força e entro, torcendo para que nada de mal aconteça. O caminho, apesar de curto, é assustador.
Fico atenta quando o motorista alcança uma garrafa que estava ao seu lado. Tento abrir os vidros, mas eles estão travados. Será que é apenas uma trava para crianças, ou esse homem vai fazer o pior comigo?
Depois de segundos de tensão, percebo que ele estava apenas bebendo água e eu que não consegui abrir o vidro. Respiro aliviada, mas não tanto assim. Presto tanta atenção em cada movimento do motorista que nem percebo quando viramos na esquina da minha casa.
Apesar do susto, desço do carro e agradeço o motorista, que em nenhum momento tentou me machucar. Assim que passo a chave no portão, sinto como se um peso gigantesco tivesse saído das minhas costas.
Por precaução, confiro se todos os meus pertences estão na minha mochila. Como esperado, tudo está aqui. Será que eu me preocupo demais com a minha segurança? Será que eu realmente preciso ficar tão tensa no caminho para casa?
Quando começo a pensar que a resposta é “não”, vejo uma manchete: “Estudante da USP é encontrada morta em Itaquera”. Realmente, todo o cuidado é necessário.
*Com edição de Otávio Augusto Aguiar