Paralisação termina em ocupação e CoIP não debate sobre cotas de graduação para pessoas transgênero

Por Jennifer Perossi e Yasmin Brussulo*
Cerca de 30% da Universidade de São Paulo, entre os campi da capital e do interior paulista, paralisaram suas atividades acadêmicas no dia 8 de maio, de acordo com o DCE Livre da USP. O motivo? Pressionar as esferas decisórias da Universidade pela implementação das cotas para pessoas transgenero, travesti e não-binárias.
O Conselho de Graduação (CG), responsável pela decisão sobre formas de ingresso na Universidade, indicara que o debate sobre assunto estaria sob responsabilidade da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP). A expectativa dos estudantes era de que o tema fosse tratado na reunião do Conselho de Inclusão e Pertencimento (CoIP) que ocorreria naquele dia.
O que motivou a paralisação foi a falta de resposta da PRIP quanto ao ofício enviado pelo DCE e pela Coletiva Xica Manicongo, um mês antes da reunião, que exigia que debates sobre as cotas trans fossem incluídos na programação do encontro. Segundo a PRIP, o documento, que continha a assinatura de 26 membros do CoIP, não atingiu o número de assinaturas necessário. Na ocasião, estudantes engajados com a pauta se manifesta- vam em frente a Reitoria. Mas a medida de inclusão não foi debatida na reunião.
O QUE ACONTECEU?
Segundo a PRIP, as cotas trans não faziam parte da ordem do dia. Três dias antes da reunião, a portaria PRIP nº 53 instaurou um grupo de trabalho (GT) com objetivo de estudar medidas de bem estar e inclusão trans na Universidade. O grupo é formado por representantes dos estudantes, professores, coletivos trans e da própria PRIP.
Questionada, a PRIP afirma que houve falas de todos os representantes. Contudo, não divulgou as atas, que em tese deveriam ser públicas, e instruiu a reportagem a entrar com um pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) para obtê-las. A reportagem abriu o pedido de LAI, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria.
Em entrevista ao Jornal do Campus, a estudante Rosana (nome fictício), que estava presente na reunião, disse que o encontro mostrou a má vontade dos integrantes do CoIP em dar atenção à questão. “Nós perguntamos sobre o GT, porque o Conselho havia indicado a PRIP para tocar essa pauta, mas ficou claro pra mim que eles não discutiram isso internamente”.
Em retaliação, os manifestantes ocuparam os blocos K e L, sedes administrativas do campus. Uma nota de repúdio foi publicada pela PRIP, com as assinaturas de 39 dos 62 conselheiros de Inclusão e Pertencimento. Os conselheiros docentes criticaram a conduta dos representantes discentes na reunião.

A reportagem colheu relato de uma conselheira. Ela conta que “o tema não poderia ser pautado naquela reunião por conta dos processos burocráticos, que são os mesmos em todos os conselhos da Universidade.”
Segundo a conselheira, “a PRIP está conseguindo implementar ações afirmativas e de acolhimento em um contexto muito conservador. As cotas raciais, por exemplo, ainda encontram resistências internas muito grandes”.
A primeira experiência de cotas trans para o acesso à graduação em uma universidade pública brasileira aconteceu ainda em 2018, na Universidade Federal do Sul da Bahia. No total, 19 universidades públicas brasileiras já aprovaram políticas afirmativas para pessoas gênero dissidentes.
A Unicamp aprovou com unanimidade as cotas trans após uma greve estudantil em 2023. Na USP, a implementação da política também foi uma das reivindicações da greve geral de 2023. Mas, apesar disso, o GT só foi estabelecido em maio de 2025. “Diferentemente de outras universidades que já tiveram as cotas trans aprovadas, a parte institucional da USP demonstra resistência e conservadorismo para sequer falar dessa pauta”, afirma Azri Pessoa, estudante de Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e diretor LGBTQIA+ do DCE.
A LEGITIMIDADE DAS COTAS
Uma nota da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) afirma que o papel das cotas no ingresso à universidade pública no Brasil é “fortalecer a inclusão e a autonomia da comunidade trans na formação acadêmica e profissional”, formada em boa parte por pessoas marginalizadas.
Dados do Corpas Trans, projeto de pesquisa e extensão da USP que visa combater a transfobia nos campi, afirma que a porcentagem de alunos trans, travestis e não binários na graduação é 0,15%. Números obtidos extraoficialmente pelo portal UOL dizem que 2,33% do corpo discente é gênero dissidente. Mas conforme explica Gabrielle Weber, professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP e integrante do Corpas Trans, a discussão toma uma profundidade maior do que dados frios. “Ter 2,5% de pessoas trans na USP [número superior ao 1,88% estimado no Brasil] não é um argumento contra as cotas, já que esse instrumento de reparação é voltado para as pessoas que, por serem trans, tiveram o seu acesso à universidade dificultado.”
Para ela, raça, classe e regionalidade são fatores que devem ser levados em conta quando se fala sobre os entraves que esse demográfico enfrenta no acesso ao ensino superior. “Os dados do Corpas Trans indicam que dentro das pessoas trans que entram na USP, a maioria são pessoas brancas privilegiadas.” Ela pontua que outra questão é em quais institutos estão essas pessoas.
O objetivo das cotas é que haja um número mínimo de pessoas trans que passaram por entraves em todos os campos do conhecimento, em todos os campi da Universidade. “Há 2,5% de pessoas trans cursando Medicina, Direito, ou qualquer outro curso muito concorrido?”, questiona Weber.
*Com edição de Tatiana Couto e Yasmin Teixeira