Negacionistas da USP são refutados pela comunidade científica

Por Aline Fiori, Louisa Harryman e Yasmin Constante*
“Scientia Vinces”. Para aqueles que frequentam a USP, esse lema pode ser familiar. Presente em seu brasão, a frase significa “vencerás pela ciência”, uma forma de reforçar que o desenvolvimento de pesquisas é indispensável para a instituição.
Para Carlos Orsi, jornalista e editor-chefe da revista Questão de Ciência, as ciências existem e avançam porque são alimentadas pelas contradições. Mas o negacionismo não é uma simples oposição, trata-se da recusa em aceitar consensos científicos estabelecidos e apoiados por evidências concretas.
“Se alguém quer alegar que a Terra é quadrada, ele é livre para fazer isso, mas tem que trazer algum tipo de prova poderosa para derrubar o consenso bem estabelecido”, explica. Dentre as 5 mil pessoas que compõem o seu corpo docente, a USP possui uma minoria de profissionais que podem se enquadrar na definição de “negacionista” proposta por Orsi.
Máscaras
A USP se destacou pelos estudos relacionados ao coronavírus. Porém, uma pequena parcela insistiu em defender temas equivocados. Os pesquisadores Beny Spira, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), e Daniel Tausk, do Instituto de Matemática e Estatística (IME), assinaram um artigo que correlaciona o aumento de mortes por covid-19 na Europa com o aumento do uso de máscaras.
Recém-publicado no periódico BMC Public Health, o trabalho apresenta fragilidades, como a metodologia observacional, baseada na análise de dados pré-existentes. A pesquisa, segundo o próprio Tausk, não é capaz de estabelecer causa e efeito, já que, para isso, seriam necessários testes randomizados – isto é, estudos controlados.
O matemático afirma que na vida real, em condições diferentes do laboratório, as máscaras estão sujeitas ao uso incorreto. Ele acrescenta que o artigo não confirma que elas não funcionam, mas levanta suspeitas sobre a sua ineficácia.
Gonzalo Vecina – professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e fundador da Anvisa – enfatiza a importância do equipamento para conter doenças respiratórias, transmitidas principalmente por via aérea. Ele afirma que a contaminação é uma progressão geométrica: se um contaminado transmite para três pessoas, elas transmitem para mais três e assim por diante.
Cloroquina
Paolo Zanotto também é professor do ICB, especializado em evolução viral. Em 2021, o docente se envolveu em uma polêmica ao prestar consultoria informal para ex-gestores do governo Bolsonaro. Ele defendeu o tratamento precoce com hidroxicloroquina, medicamento não indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o tratamento do coronavírus. Também apresentou ressalvas quanto à rapidez com que as vacinas ficaram prontas.
Para Vecina, os estudos sobre o uso do medicamento para tratamento do covid-19 não adotaram metodologia correta. Ele destaca que o primeiro artigo a defender a hidroxicloroquina – do médico Didier Raoult – não utilizou um grupo randomizado, nem se preocupou em controlar as condições prévias dos pacientes.
Em uma nota de repúdio divulgada na época, o Centro Acadêmico Rosalind Franklin, formado por alunos do ICB, anunciou que há anos os discentes denunciam declarações inapropriadas de Zanotto durante as aulas. “O CARF posiciona-se contrário a todas essas atitudes, pois entendemos que é nossa obrigação, como cientistas em formação, repudiar posicionamentos negacionistas e anticiência”.
Clima
Em 2023, a USP demitiu Ricardo Felício, professor responsável pela disciplina de Climatologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). A decisão veio pelas frequentes ausências. Felício também ganhou fama pelos seus posicionamentos: ele negava publicamente a crise climática.
Em entrevista ao Programa do Jô, em 2012, Felício afirmou que o aquecimento global era uma farsa e não poderia ser associado à ação humana, alegando que as temperaturas já se alteravam antes da chegada do homem à Terra. Além disso, defendeu que “o efeito estufa é a maior falácia científica da história”.
Um artigo, publicado em 2021 na revista Environmental Research Letters, evidencia que 99,9% dos cientistas concordam que a ação humana é responsável pela crise climática. Para obter o resultado, foram avaliados quase 88.125 mil pesquisas científicas publicadas entre 2012 e 2020, em que apenas 28 discordavam do consenso.
Paulo Artaxo, docente do Instituto de Física (IF) e membro do Painel Intergovernamental de
Mudanças Climáticas (IPCC) explicam que a queima de combustíveis fósseis é responsável pela produção de 57 milhões de toneladas de emissões de gases do efeito estufa por ano.
O pesquisador explica que o Brasil é um dos países mais vulneráveis às mudanças climáticas por estar em uma região tropical e ter dimensões continentais. Atualmente, os países caminham para um aumento médio de temperatura em 3 °C, porém, o aumento pode chegar até 4,5 °C no território brasileiro. “O nosso país tem que se adaptar ao novo clima se não quisermos ser fortemente afetados socialmente, economicamente e ambientalmente pelas mudanças climáticas”, afirma.
Estudantes
Rodrigo Fernandes escolheu ter aula com Felício em 2018, mesmo já conhecendo e discordando das suas ideias. Ele afirma que a decisão veio após indicação de veteranos, que disseram que as aulas eram técnicas e não abordavam mudanças climáticas. Já Vitor Mazur, estudante de Engenharia Ambiental, não conhecia Zanotto quando se matriculou para a disciplina de Virologia e só ficou sabendo do histórico do professor após o início das aulas.
Um ponto comum entre os relatos é que, apesar de Felício e Zanotto terem declarações abertamente negacionistas na mídia, dentro da classe a postura era diferente. “Nas aulas ele era extremamente técnico e acessível. Muitas vezes desconfio que ele ia introduzir um assunto polêmico, mas desistiu. Então, não posso falar que durante a aula apresentou um discurso negacionista”, explica Fernandes.
“Pessoas inteligentes são muito boas em inventar desculpas para não mudar de ideia. Se existe uma base forte de identidade e são dadas evidências de que é bobagem, a pessoa começa a inventar“
Carlos Orsi, editor-chefe da revista Questão Ciência.
Atuação
Apesar dos pesquisadores terem liberdade em propor temas, Orsi aponta que há quem conteste fatos científicos com o intuito de atender interesses de determinados grupos. Assim, os artigos tornam-se peças ideológicas, enquanto no campo científico são considerados irrelevantes. Para ele, este uso da ciência pode estar conectado a um papel social para influenciar a opinião pública, já que não atinge a comunidade científica.
“Passar em concursos públicos e obter títulos acadêmicos não prova que você é uma pessoa imune a ser capturada por pautas ideológicas”, completa.
Tausk acredita que a academia e a mídia atuam como em uma “briga de torcida”, que mistura política e ciência. “A Revista Oeste [mais conservadora] celebrou nossa pesquisa, já a mídia que estava do lado das máscaras foi rápido atrás de pessoas para falar mal. Pessoas que não têm nada a ver com a área”.
Além da entrevista com Tausk, o JC tentou contato com Felício e Zanotto, que não responderam. Beny Spira atendeu à reportagem, mas ao ser questionado posteriormente sobre ser visto como negacionista por seus pares acadêmicos, desautorizou a publicação da conversa.
*Editado por Júlia Sardinha
