Trabalho escravo persiste no Brasil

Depois de mais de um século da abolição, décadas de militância e uma legislação protetiva conquistada, avanços e retrocessos marcam luta contra a escravidão no país

Em maio, o Brasil comemorou 127 anos da abolição formal da escravidão, uma prática institucionalizada que durou quase quatro séculos e destituiu a liberdade e a dignidade de milhões de pessoas. Ao mesmo tempo, 2015 marca os 20 anos da criação do sistema de combate ao trabalho escravo no país, o que significa que, apesar de parecer uma realidade superada e distante no tempo, a exploração do trabalho em formas análogas à escravidão subsiste. Até quando? Com a aprovação, em 2014, da Emenda Constitucional 81 (a PEC do Trabalho Escravo), que prevê a expropriação de imóveis rurais e urbanos onde houver constatação de trabalho escravo – e a destinação destas propriedades à reforma agrária ou a programas habitacionais –, o Brasil conquistou uma grande vitória na luta contra as formas de escravidão contemporâneas. Porém, isso vem suscitando reações.

Atualmente, tramita na Câmara um Projeto de Lei que propõe alterar o conceito de escravidão expresso no Código Penal. O PL 3842/12, de autoria do ex-deputado Moreira Mendes, já aprovado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural em 15 de abril, retira os termos “jornada exaustiva”, “condições degradantes de trabalho” e “preposto” (o chamado “gato”) do artigo 149 e inclui a necessidade de ameaça, coação e violência para a caracterização do trabalho escravo. Justifica-se a alteração pela necessidade de corrigir uma imprecisão que poderia levar à insegurança jurídica: “São excluídos, portanto, da legislação penal os elementos de indeterminação que inibem a persecução criminal e que geram impunidade […].” É importante observar que a Emenda Constitucional 81 prevê a expropriação de propriedades “na forma da lei”, e é justamente este o ponto de embate.

Apesar de a proposição ter passado pela Comissão e agora estar sujeita à apreciação do Plenário, para os setores engajados na luta contra formas de escravidão contemporânea no Brasil, o PL representa atraso, pois dificulta a caracterização do trabalho escravo, a fiscalização e a punição. Gulnara Shahinian, ex-Relatora Especial sobre as Formas Contemporâneas de Escravidão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, atual consultora para o combate ao tráfico de pessoas, afirmou em relatório que, nos últimos anos, tem havido uma série de melhorias jurídicas nos níveis internacional e nacional, as quais representam as melhores práticas no combate a este crime. “Em nível nacional, uma ampla gama de países aprovou uma legislação abrangente proibindo e punindo as formas contemporâneas de escravidão”. E ela cita o Brasil como exemplo. Em visita ao país em 2010, a então relatora elogiou o Brasil por ter reconhecido a existência de trabalho forçado em seu território e colocado em prática políticas de combate às formas contemporâneas de escravidão. No entanto, concluiu que estas medidas exemplares são ameaçadas justamente pela impunidade de que gozam os proprietários de terras, as empresas locais e internacionais e os intermediários, os chamados “gatos”.

 

O trabalho escravo e os produtos dele derivados nem sempre são fáceis de identificar  (Foto: Quéfren de Moura)
O trabalho escravo e os produtos dele derivados nem sempre são fáceis de identificar
(Foto: Quéfren de Moura)
Não é só uma questão de trabalho

Para grupos engajados na luta pelo fim da escravidão, como a Repórter Brasil, ONG fundada em 2001 por jornalistas, cientistas sociais e educadores com o objetivo de fomentar a reflexão e a ação sobre a violação aos direitos fundamentais dos povos e trabalhadores no Brasil, trabalho escravo não é apenas desrespeito a leis trabalhistas. É uma grave violação aos direitos humanos. Em texto produzido a pedido da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), a ONG pontua que os termos retirados do Código Penal pelo PL “não são vagos, imprecisos ou subjetivos, como argumentam os defensores da mudança. O que está tutelado no artigo 149 não é apenas a liberdade, mas sim a dignidade da pessoa humana.” Ou seja, “é importante que se mantenha a punição para quem desrespeita a dignidade do trabalhador, sujeitando-o a condições de alojamento, alimentação, trabalho, saúde, segurança desumanas.” Para eles, uma mudança como a proposta é que levaria à insegurança jurídica, “com milhares de processos tendo que tomar um novo rumo, trabalhadores desconhecendo seus direitos, produtores rurais na dúvida de que decisões tomar”.

Desafios e avanços

Segundo os resultados das operações realizadas pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detra) do Ministério do Trabalho e Emprego, o Brasil contabiliza 46.478 trabalhadores, no campo e nos centros urbanos, libertos em condições análogas à de escravos desde 1995, ano em que os grupos móveis de fiscalização passaram a atuar no país. O trabalho das equipes realizou, até 2014, 1.572 operações em 3.741 estabelecimentos, e contou com a ação de auditores fiscais do trabalho, procurador do Ministério Público do Trabalho, agentes da polícia federal (eventualmente, delegados) e motoristas, com vistas a verificar denúncias in loco. A escravidão pelo país assume formas plurais, motivo pelo qual deflagrá-la não é simples. O Poder Público, as instituições e as organizações não governamentais dedicadas à erradicação do trabalho escravo enfrentam desafios grandes, na esfera jurídica e para além dela.

Considerando o tamanho do problema no país, a fim de colaborar na luta contra a escravidão, em 2012 foi lançado o Atlas do Trabalho Escravo no Brasil. Desenvolvido pelos geógrafos Hervé Théry, Neli Aparecida de Mello, Julio Hato e Eduardo Paulon Girardi, com apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), traz uma metodologia que caracteriza a distribuição, os fluxos, as modalidades e os usos do trabalho escravo no país. Uma das grandes contribuições deste trabalho são os índices de probabilidade de trabalho escravo e de vulnerabilidade ao aliciamento. No primeiro caso, trata-se de uma ferramenta de avaliação de risco. No Atlas os autores explicam que “um risco baixo não deve levar a subestimar o problema, mantendo as políticas de due diligence convencionais. Já um risco alto deve levar a cautelas especiais.” O índice de vulnerabilidade ao aliciamento, por sua vez, aponta para as regiões de origem do escravo, e é complementar ao primeiro, colocando em foco áreas de ocorrência do problema. Segundo Hervé Théry, um dos autores da obra e professor convidado da USP, “A gente fez esse trabalho a pedido da OIT, que se fundamenta numa convenção internacional que o Brasil assinou. A princípio, a ideia era mapear apenas os dados conhecidos [sobre a escravidão no Brasil]. Mas pensamos que talvez poderíamos fazer um pouco mais. Baseados nesses casos, fruto de denúncias, nós analisamos de perto as circunstâncias dessas pessoas e fizemos um perfil. Então o utilizamos para procurar situações semelhantes, tivessem ou não casos conhecidos. E mostramos que há muitos municípios, geralmente mais longe dos centros povoados, mais recentemente ocupados, em que não havia conhecimento de casos, mas onde ocorre a escravidão.” Nos dois anos que seguiram a publicação, Hervé conta ter acompanhado de perto os desdobramentos e impactos do estudo: “a gente percebeu que grupos móveis começaram a ir fiscalizar lugares onde ainda não havia denúncias. Por exemplo, no ano seguinte eles descobriram no Mato Grosso do Sul, onde eles iam pouco até então, duas fazendas com mais de mil trabalhadores em situação de escravidão.” A perspectiva do pesquisador é cooperar com outros grupos, ONGs, associações e o próprio Poder Público na consecução de políticas para a erradicação deste problema. Na contramão dos esforços para dificultar a punição deste crime, Hervé acredita que esse possa ser um trabalho positivo na deflagração do trabalho escravo ainda existente pelos confins do país: “Eu quero crer que esse trabalho puramente acadêmico esteja tendo algum impacto na sociedade.”

Por: Quéfren de Moura