Núcleo de Consciência Negra sofre com degradação e falta de apoio

Mesmo em espaço precário, núcleo mantém debates e seu cursinho ativo

O Núcleo de Consciência Negra (NCN) da USP foi fundado há 28 anos. Desde então, tem promovido o debate de questões como a discriminação à população negra e cotas raciais bem como outros assuntos que se referem ao acesso do negro à faculdade e às suas condições históricas e sociais.

Cursinho

Ao longo dos anos, a atividade que ganhou maior importância dentro do Núcleo foi o Cursinho, que é oferecido principalmente para a população afrodescendente e de baixa renda, mas que também recebe outros estudantes. É cobrada uma taxa de inscrição mas, segundo o professor Evandro, que leciona Química, “na prática, essa taxa acaba sendo simbólica, porque muitos estudantes não têm como pagar, e nós não deixamos de recebê-los por isso.” Há ainda o Centro de Estudos de Idiomas, que oferece aulas de inglês, francês, alemão, espanhol e também de português para estrangeiros.

O Cursinho funciona de segunda à sexta, em dois períodos: o vespertino e o noturno. Há um número limitado de vagas, mas, devido à grande evasão, dificilmente as turmas ficam lotadas. De acordo com Geovana, aluna do Núcleo, uma das razões para isso é a condição financeira: “tem gente que não consegue vir por causa do transporte. O circular não é de graça para nós. E também tem a alimentação. Só recentemente, e com muita luta, conseguimos fazer com que liberassem o bandejão para nós.”

Instalações do Núcleo de Consciência Negra (Foto: Leonardo Dáglio)
Instalações do Núcleo de Consciência Negra (Foto: Leonardo Dáglio)

Um grande problema é a infraestrutura do local. Além dos cupins e da falta de espaço, há ainda sujeira, rachaduras nas paredes, fios soltos. O banheiro parece estar desativado pela grande quantidade de materiais de obras abandonadas deixada lá. Sem apoio, o NCN se mantém basicamente com as taxas de inscrições dos alunos e com doações. Além disso, outra questão importante é a falta de professores e funcionários, uma vez que todo o trabalho é voluntário e muitas pessoas se comprometem a ajudar e não o fazem.

Mas nem tudo são problemas: todo ano, dezenas de estudantes são aprovados, não somente na USP, mas em diversas outras faculdades públicas por todo o Brasil. De acordo com os professores, quase todos os alunos que realizam o cursinho completo com dedicação são aprovados, quando não com um ano de estudo, com dois.

Os alunos concordam e contam suas próprias experiências em sala. Geovana diz que o cursinho é muito bom porque, além dos conteúdos normais de vestibular, ele também é bastante carregado política e ideologicamente. A estudante, que deseja cursar Têxtil e Moda, acrescenta ainda: “Outra coisa legal é que aqui há uma troca: não é aquela coisa que gira em torno do professor e todo mundo fica quieto e ouve. A gente debate, tem direito de fala, e todo mundo aprende com todo mundo.”

De acordo com Leonardo, que quer estudar Direito, outro aspecto relevante é que os alunos se ajudam, diferentemente do que parece acontecer nos cursinhos das grandes redes educacionais, em que os outros estudantes são vistos como concorrência. William, que deseja se formar em Arquitetura, lembra-se de um episódio marcante: “um dia vieram aqui falar sobre se aceitar negro. Aceitar o seu cabelo, a sua boca, aceitar quem você é, e ter orgulho disso.”

Instalações do Núcleo de Consciência Negra (Foto: Leonardo Dáglio)
Instalações do Núcleo de Consciência Negra (Foto: Leonardo Dáglio)

O professor Evandro explica que o Cursinho tem uma matéria chamada Debates Sociais em que representantes de vários coletivos discutem pautas diversas com os alunos, não apenas relativas à população negra, mas também a outras minorias sociais como as mulheres e os LGBTs.

Em outras disciplinas também se notam diferenças: em História, por exemplo, os estudantes têm aulas sobre a História da África. “O núcleo entende a importância disso”, diz o professor. “A gente não prepara simplesmente o aluno pro vestibular, a gente também o prepara para questionar o vestibular. Questionar como ferramenta de acesso, ou ferramenta de exclusão.”

Inserção na USP

A relação da USP com o NCN não é das melhores: “a melhor interação que a gestão Rodas teve com o Núcleo foi mandar uma cartinha dizendo: ‘Saiam, porque esse lugar vai ser derrubado’ e aparecer com o trator no dia seguinte. Demoliram metade do barracão, e só não derrubaram o resto porque os alunos acamparam aqui”, diz Evandro. Ele acredita que, na atual gestão, as coisas estão um pouco melhores, mas eles ainda têm que brigar para consertarem janelas, por exemplo, e, às vezes, esquecem de cortar a grama. “Mas só o fato de não ameaçarem acabar com o núcleo o tempo todo já é algo bom”, afirma.

Questionados sobre o assunto, os alunos confirmam. William diz que “estudante do cursinho não tem direito a nada” e Leonardo concorda: “dá pra perceber que eles não nos querem aqui.” Geovana acrescenta que “estão fechando cada vez mais a USP. Recentemente tivemos dois menores apreendidos aqui”. A estudante se refere à ação da PM no Núcleo empreendida em Julho deste ano. De acordo com o NCN, vários policiais armados entraram no local, em busca dos dois jovens, tudo feito de forma truculenta e hostil, sem muitas explicações.

Ao falar sobre a interação entre o Núcleo e os estudantes da USP, Evandro afirma que ela é quase inexistente. Segundo o professor, além da falta de tempo e de pessoal para cuidar especificamente disso, as tentativas anteriores, principalmente no que se refere ao DCE, não foram as melhores, o que faz com que o NCN geralmente não busque parcerias com eles, embora todos afirmem que, se alguém da comunidade USP os procurar e propuser mobilizações ou outras atividades, certamente haverá interesse por parte do núcleo.

No entanto, é importante notar que existem algumas boas experiências: recentemente, por exemplo, o Centro Acadêmico da Biologia promoveu um debate sobre raça do qual participaram representantes do NCN. No Instituto de Química, em mais de uma ocasião deu-se voz ao Núcleo em debates sobre questões como a das cotas raciais.

Instalações do Núcleo de Consciência Negra (Foto: Leonardo Dáglio)
Instalações do Núcleo de Consciência Negra (Foto: Leonardo Dáglio)

Há muito trabalho a ser feito, além de dar aula: o Cursinho possui uma biblioteca cujos livros não estão catalogados e arrumados, o que torna impossível que haja um controle ou uma busca mais eficiente dos títulos; o Núcleo não tem uma secretária fixa, o que dificulta a comunicação; há muitos eventos nos quais a participação do NCN seria importante, e muitos outros que ele próprio poderia organizar, mas não há um número suficiente de pessoas para isso.

O NCN não tem ligações com projetos de extensão voltados para a comunidade mais carente, como o Projeto Redigir ou os coletivos representativos das minorias sociais, espalhados por toda a USP. “O núcleo é um Núcleo de Consciência Negra na USP, e não da USP, porque a universidade nunca reconheceu o NCN como uma entidade”, comenta Evandro

O professor conclui: “o Núcleo considera que a USP é extremamente atrasada nesse sentido. As únicas universidades que não propuseram ainda uma discussão sobre a questão das cotas raciais são as estaduais, como a USP e a UNICAMP. Esse processo já está acontecendo nas universidades federais.”

Por Leonardo Dáglio