Resistência: matéria-prima da consciência negra

Projeto realizado pela FE leva história e cultura da África a alunos de escolas públicas

No lugar da figura de princesa Isabel como a benevolente heroína que libertou os “passivos” negros da escravidão, o dia 20 de novembro lembra os brasileiros da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares e símbolo da luta e do protagonismo dos africanos e afrodescendentes contra a opressão. Mais que uma celebração, o Dia da Consciência Negra, ajuda a descontruir a ideia, contada pela “história oficial”, dos negros como personagens passivos, quase coadjuvantes na conquista de sua própria liberdade.

Na mesma sintonia, em uma espécie de esforço para geração desta consciência negra, nasceu neste ano, na Faculdade de Educação (FE), um projeto que tenta levar a África e a cultura africana e afro-brasileira para estudantes e professores do ensino básico, com uma perspectiva diferente da que usualmente encontramos nos livros didáticos e aulas de história. Coordenados pela professora Mônica Amaral, um grupo de pesquisadores e artistas trabalha para demonstrar e reforçar o traço mais marcante da trajetória do negro no Brasil: a resistência.

“A ideia é fazer uma articulação entre passado e presente, recuperando nossas culturas ancestrais e fazendo isso dialogar com a cultura contemporânea que eles [alunos] curtem. Antes eram oficinas, mas agora é um trabalho articulado entre alguém da cultura afro e o professor”, explica Mônica.

Cerca de 20 pesquisadores – especialistas em Hip Hop, Funk, Break, Rap e Capoeira e outras artes – fazem parte do projeto de pesquisa O ancestral e o contemporâneo nas escolas: reconhecimento e afirmação de histórias e culturas afro-brasileiras, que trabalha com a ideia da docência compartilhada, onde os arte-educadores atuam como parceiros dos professores da escola municipal Saturnino Pereira, situada na região de Cidade Tiradentes, extremo leste da capital paulista.

Alunos do colégio Saturnino Pereira em atividade (Foto: Igor Truz)
Alunos do colégio Saturnino Pereira em atividade (Foto: Igor Truz)

“Nós recebemos o conteúdo que será passado pelo professor e analisamos como podemos complementá-lo, ampliar seus horizontes” explica Valdenor Silva dos Santos, mestre de capoeira que faz parte do grupo de pesquisa.

Além da estrutura da própria FE, os pesquisadores contam também com apoio da Fapesp e do Núcleo Étnico-Racial da Secretaria Municipal de Educação que, recentemente, por meio de um edital, ajudou na contratação de mais arte-educadores.

O objetivo do grupo é ampliar o cumprimento da Lei 10.639, de 2003, que determinou a obrigatoriedade do ensino de África e cultura africana nas escolas, públicas e privadas, de ensino básico. Apesar de já existir há 12 anos, a lei não foi traduzida em mudanças nos currículos escolares.

“Nós aprendemos que os gregos são o berço da civilização, mas não que os gregos aprenderam com os egípcios, que são africanos e negros. Essa lei tem a importância de obrigar os brasileiros a voltar os olhos para essa cultura que faz parte de nossas origens e penetrou em nossa sociedade e continua muito viva. Mas existe muita dificuldade, pois os professores e diretores que estão nas escolas não estão preparados para isso. Eles tiveram uma educação eurocêntrica, em que a história da África foi relegada a segundo plano, quando não eliminada do currículo”, afirma Mônica.

Segundo a coordenadora, inspirada no projeto, a prefeitura de São Paulo deve contratar outros artistas para trabalhar, na mesma linha, por escolas de toda cidade.

Construção

O projeto não enxerga a educação a partir de um prisma “conteúdista”, mas sim como uma ferramenta de formação dos estudantes. Os arte-educadores procuram potencializar aquilo que já está no currículo escolar, sempre com a preocupação de conectar o que é discutido na escola com a realidade do mundo de hoje.

A musicista que fala sobre funk, por exemplo, trabalha em parceria com o professor de português analisando as letras das músicas. Enquanto isso, os capoeiristas, cuja associação óbvia seria com o professor de Educação Física, estabelecem parcerias com os professores de História.

“Nós temos algumas dinâmicas ligadas à cultura da capoeira para pode fazer a aproximação com os alunos. Isso é importante no trabalho com a criança, porque você não pode chegar e colocar ela para fazer um golpe de capoeira. É preciso entrar por outro viés, pelo lazer, pela música, pela questão lúdica. Você constrói a capoeira dentre de cada um até o momento de trabalhar o corpo ficar mais tranquilo”, explica o mestre Valdenor.

Valdenor Silva dos Santos, mestre de capoeira (Foto: Igor Truz)
Valdenor Silva dos Santos, mestre de capoeira (Foto: Igor Truz)

Juntamente com Alexandre Miranda e Hipolito Roberto da Silva – os mestres Padinha e Bahia –, Valdenor se encontra com alunos do 8º ano do Saturnino Pereira todas as terças-feiras. Os capoeiristas dão palestras, exibem trechos de filmes, ensinam letras de músicas usadas na capoeira e fazem dinâmicas com os estudantes.

Em uma destas atividades, aproveitando a oportunidade de que o assunto da aula de História era o tráfico negreiro, os mestres propuseram que os alunos se agrupassem em um pequeno espaço com o objetivo de simular o “conforto” dos africanos que eram trazidos para o Brasil nos navios negreiros. Em outra dinâmica, chamada de “Jogo do Quilombo”, os jovens brincam de pega-pega enquanto simulam a perseguição do capitão-do-mato ao escravizado.

Segundo Valdenor, por meio do projeto é possível transmitir aos alunos valores civilizatórios diferentes da perspectiva europeia, como a hierarquia circular de uma roda de capoeira, onde todos têm um diálogo de igual para igual; o respeito aos mais antigos; e a importância da musicalidade e da oralidade. Além disso, as músicas e palestras abordam assuntos que, muitas vezes, são desconhecidos até pelos professores.

“Os livros didáticos não trazem a história completa em relação aos negros. Eles sempre aparecessem em condição submissa, de sofrimento. Pouco se fala dos heróis negros, das batalhas, dos levantes vitoriosos” ressalta o mestre.

Grupo de pesquisa da Faculdade de Educação (Foto: Igor Truz)
Grupo de pesquisa da Faculdade de Educação (Foto: Igor Truz)

Coordenadora da Saturnino Pereira, Odete Carvalho afirma que as atividades estão sendo bem recebidas pela escola e pelos professores.

“É um elemento muito rico para a escola. Ninguém nunca falou com a gente dessa forma. Nós aprendemos aquela história da princesa Isabel e tal. O projeto enriquece o nosso currículo. Essa história de estereotipar o negro, de se pintar de preto quando vai fazer um teatro, isso tinha que acabar nas escolas. Temos que ter um currículo verdadeiro. Como nós temos oportunidade de trabalhar aqui, todos deveriam trabalhar”, destaca Odete.

De acordo com ela, apesar do projeto funcionar há pouco tempo na escola, já é possível perceber como as atividades estimulam o desenvolvimento da consciência sobre a questão do negro no Brasil.

Por Hailton Biri e Igor Truz