Pós-verdade: a base do poder

Relatores especiais da ONU sobre liberdade de expressão elaboraram uma declaração sobre a preocupação global a respeito da veiculação de notícias falsas na internet. Paralelamente, um recente estudo do Monitor de Debate Público no Meio Digital da USP, listou os dez sites que mais veiculam notícias falsas na internet e como a rede social Facebook utilizou o feed de notícias para que informações falsas tivessem alcance e legitimidade.

Os sites apresentados pelo estudo são todos sobre política nacional, o que fortalece a opinião daqueles que atribuem o debate público e político feito no último ano à ideia de “pós verdade”. O conceito antigo ganhou fama e popularidade em 2016, quando o Dicionário Oxford, editado pela universidade britânica do mesmo nome, elegeu “post-truth” como a palavra do ano. Segundo os pesquisadores, o uso do conceito cresceu em 2000%.

Segundo o Dicionário, a pós-verdade “se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Ou seja, quando a verdade factual é menos importante do que o objetivo final ao veicular informações, fazendo com que os factóides ganhem força.

A forma como dados ou notícias falsas ganham o selo da autenticidade da opinião pública está intimamente ligada à pós-verdade. O conceito emergiu durante as eleições estadunidenses, quando diversas notícias falsas foram veiculadas com a intenção de fortalecer a candidatura de Donald Trump à presidência. No meio do mundaréu de informações, sites veicularam que o Estado Islâmico havia sido fundado por Barack Obama, que apoiava a candidatura da democrata Hillary Clinton. Na Europa, a pós-verdade ganhou força durante a campanha do Brexit, que levou os britânicos ao plebiscito que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia (UE). A revista The Economist, da edição de setembro de 2016, publicou artigo que citava como exemplo da “política da pós-verdade” a informação veiculada pelos simpatizantes do Brexit, que afirmavam que a permanência na UE custava 350 milhões de libras ao ano aos cofres públicos, e que o dinheiro, após a saída, seria destinado ao National Health Service (NHS), serviço público de saúde do Reino Unido.

No Brasil, o conceito permeia desde o alto escalão do poder público, até  atmosferas mais comuns. Se em Brasília podemos ter o poder executivo agindo em favor do fortalecimento da pós-verdade, do lado de cá enxergamos o poder reitorial construindo o mesmo infatigável caminho.

Em escala federal, o conceito ganha força à medida que os processos políticos jurídicos se tornam mais complexos, e que os personagens envolvidos nos casos de corrupção investigados atualmente pela Operação Lava Jato são figuras que pertencem ou pertenceram a alta cúpula do poder público brasileiro. Os exemplos aqui podem partir da própria operação: com o objetivo de descobrir e penalizar os agentes da corrupção, ela se tornou também um espetáculo midiático, fez uso indiscriminado da pós-verdade.

Na sede da Operação, em Curitiba, em setembro do ano passado o Ministério Público Federal, na figura do coordenador da força-tarefa Deltan Dellagnol, acusou o ex-presidente Lula de ser chefe de um grande esquema de propinas, como um “maestro de uma grande orquestra concatenada para saquear os cofres públicos”. Utilizaram para isso uma cômica apresentação gráfica em powerpoint, que veio de suposições a partir das investigações. Embora afirmavam a ligação de Lula com os esquemas de corrupção, até agora nenhum desses fatos foram provados.

A Lava Jato, hoje, é a base e o pano de fundo dos fatos – ou factóides – políticos brasileiros. Às vésperas das delações da Odebrecht, que renderam uma lista de 98 nomes de políticos e autoridades brasileiras envolvidas em corrupção, o presidente Michel Temer, um dos citados, tentou mudar as regras eleitorais do financiamento de campanhas ao buscar descriminalizar o uso do caixa dois. Aqueles que buscavam a aprovação sustentavam o argumento de que aquilo serviria para baratear os custos e diminuir a irregularidade das disputas. Ora, se a principal fonte de doações ilegais é o caixa dois, a medida certamente diminuiria a irregularidade ao transformar o ilegal em lícito.

O discurso da Reforma da Previdência também é questionável. Temer, como todo bom político, ignora a opinião contrária que afirma que se trata de um massacre aos desfavorecidos. Além disso, as dimensões da Reforma, que não teve bom desempenho na opinião pública, irá afetar toda a população brasileira assalariada. A ideia de que será necessário trabalhar 49 anos para garantir o pagamento integral da aposentadoria não agrada a população. A estratégia do governo foi a veiculação de propagandas publicitárias para conseguir, mais uma vez, moldar a opinião pública com base nos factóides. As propagandas que deveriam ter caráter meramente educativo foram entendidas como opinativas por apresentarem informações questionáveis e, portanto, suspensas pela Justiça.

Um dos pilares que sustentam a pós-verdade é justamente a indiferença com que a verdade dos fatos é tratada, sempre com o objetivo final de atingir a opinião pública. Nisso, as reformas de Temer se aproximam dos Parâmetros de Sustentabilidade Econômica do reitor Marco Antonio Zago, tratado na edição 468 do Jornal do Campus.  

O que veio para estabelecer um novo teto de gastos afim de regrar a “vida econômica” da Universidade, ao que parece chega para causar demissões em massa, e consequentemente, um sucateamento progressivo na Universidade. A justificativa de Zago e dos envolvidos é o alto custo das despesas com o salário dos servidores, que é acima do permitido para esta categoria. É fato, que não é saudável que a Universidade gaste mais do que ganhe, mas o que é apresentado pelos Parâmetros deverá causar a demissão de cerca de 6 mil funcionários para que os gastos cheguem a um valor aceitável para a gestão da universidade. O membro do Conselho Universitário e presidente responsável pela Comissão de Orçamento e Patrimônio, que planejou os Parâmetros, Adalberto Fischmann, falou ao Jornal do Campus que não existe a intenção de causar demissões, mas que a própria “vida vegetativa” da Universidade fará esse ajuste: aposentadorias, mortes, demissões voluntárias, doenças ou afastamentos. O que é de se estranhar, é que o Parâmetro prevê que os ajustes deverão ser feitos até 2022. Ou seja, aproximadamente 40% do quadro de funcionários deverão se desligar a partir da “vida vegetativa” nos próximos cinco anos.

É, portanto, mais importante dizer fatos questionáveis e aparentemente falaciosos para convencer os membros da comunidade universitária que um plano tão preocupante como esse não causará a demissão de servidores e não prejudicará toda a Universidade. Zago e os envolvidos na discussão tendem a divulgação de informações que não necessariamente são um culto à mentira, mas de uma inegável indisposição com a verdade dos fatos, e no caso, dos números.

Parece inerente às atuais escalas de poder a necessidade de atingir seus objetivos com o apoio da opinião pública, independente se pisa no calo da população. Agora, com quantas pós-verdades se faz uma presidência – ou uma reitoria?