Uma carta à USP

Por Aline Melo

Sempre sofri de um mal dos grandes: não sei medir palavras. Não à toa, tenho o jornalismo como profissão e missão. É parte do meu ser, entende? Dizer a verdade que, muitas vezes, ninguém pediu para ouvir.

Dia desses, me deparei com minha irmã mais nova debruçada sobre a escrivaninha no quarto. Era sábado. Dia de sol, desses que só se vê no interior e que paulistano fica de bochechas rosadas em cinco minutos. Mas ela não teve tempo de abrir as cortinas, afinal, falta apenas um mês para a tão temida Fuvest.

Não é necessário esperar pela manchete, “Fuvest tem recorde histórico de inscritos”. Mesmo que, por um milagre, não seja assim, ainda serão muitos mais fora do que dentro quando aquela lista – que mudou de vez nossas vidas – sair.

Estou dando meu máximo para não soar mal agradecida, porque ler meu nome ali foi um dos momentos de mais genuína felicidade desses meus vinte anos. Mas enquanto encarava minha irmã estudando, com um peso tão visível sobre seus ombros, eu tive de engolir em seco para não dizer: “não vale a pena”.

Minha mãe sempre disse que sou exagerada, “de nascença e juventude”. Os jovens têm essa mania de intensidade, mesmo. E para todo lugar que eu olho, tem alguém descontente com um aspecto seu. Essa não é uma carta para ofendê-la, querida USP, longe disso. Mas há tempos precisamos discutir a nossa relação.

Eu não sei bem quando foi que aquela menina cheia de tinta azul da recepção de calouros perdeu o brilho no olhar ao falar de sua faculdade. É que a gente entra tão certo de que daqui, é dominar o mundo, que é bem fácil desanimar nos quatro anos por vir. Ou cinco. Ou seis.

As salas vão esvaziando. Os professores parecem já nem tentar passar aquele conhecimento que sabemos que eles têm. Sabemos pelas centenas de livros emoldurados por todo o departamento, pelo Lattes impecável e porque eles estão na melhor do Brasil. Ou devo dizer, na segunda melhor?

Sei que esse ranking das universidades mexeu com seu ego. E de ego todos nós entendemos bem. Com um processo de entrada tão difícil, é raro não bater no peito na hora de dizer, “eu faço USP”. É só comparecer aos Jogos Universitários para entender do que eu estou falando. Ah que bom seria se fosse Juca todo dia…

Mas na labuta diária, a gente sabe que as coisas são bem diferentes. Você já deve ter ouvido pelos corredores, eu não sou a primeira a lhe dizer. É só abrir esta edição do Jornal do Campus, talvez pela última vez, para entender: as coisas não vão nada bem para o seu lado.

Do lado de cá, na Escola de Comunicação e Artes, a gente tem mania de falar. Nem sempre sobre o que é importante e geralmente não somos de ouvir, mas definitivamente fazemos algum barulho em frente à reitoria de tempos em tempos. Discutimos o desmonte da universidade até dentro da sala de aula, mas mesmo aqui temos assembleias esvaziadas.

O cansaço não parece ter a ver apenas com o movimento estudantil em si, mas com a perspectiva de que nada vai mudar. E que a realidade que a gente tem, nunca será aquela imaginada quando preenchíamos o gabarito que permitiu nosso ingresso.

Entrar na USP foi a realização de um sonho, meu e do meu pai. Sonho desses de pirralha, que aos doze anos acha que sabe muito bem o que quer, e de um homem de seus quarenta e poucos que não teve as mesmas oportunidades que a filha. Eu só não poderia imaginar que estudar aqui seria algo completamente distinto de ingressar.

Mas graças a você, conheci algumas das melhores pessoas com quem já tive o prazer de cruzar nessas linhas tortuosas do destino. Certamente, as mais inteligentes. Mais ricas também. Neste processo de desconstrução da expectativa, tive que me acostumar com o fato de que você, nossa amada universidade, é elitista, num tanto que dói.

Eu sou branca, heterossexual e de classe média, então, não vou nem entrar no mérito do preconceito. Mas vale assinalar, tem e não é pouco. Como mulher, aprendi um tanto sobre feminismo aqui, em parte, porque o machismo ainda adora dar as caras dentro e fora das salas de aula.

Não que eu tenha estado presente em muitas delas, recentemente. A minha pretensa justificativa é que, na metade do curso de jornalismo, eu sinceramente não acredito que ele formou sequer metade da jornalista que sou hoje.

Mas meus olhos lacrimejaram na primeira matéria impressa em nosso jornal comunitário, o Notícias do Jardim São Remo. Provavelmente, porque foi a única vez que eu acreditei estar devolvendo algo à sociedade. Talvez falte um pouco disso. É ingênuo pensar que todo mundo entra na faculdade querendo fazer a diferença?  

E na medida do possível – ou devo dizer, do desejado – a gente faz a diferença. Pelo menos, dentro dos limites físicos da USP. Aqui temos discussões ferrenhas sobre o futuro do nosso país, sobre o conhecimento e a sociedade. Mas dá para entender a minha aflição em nada disso passar dos portões?

O mais preocupante é que nessa nossa bolha ideológica sequer tem espaço para todos nós, uspianos. A gente, que sempre procurou defender o diferente, não sabe debater. Não com opiniões muito distintas da nossa, porque somos tentados a tachá-las ignorantes. E isso é ego, minha amiga.

Dá para entender porque mais de 20% dos alunos a deixam antes de completar o curso? No começo, todo mundo quer fazer coisas grandes e deixar seu nome nessas paredes, mas com o passar do tempo, só estamos ocupados tentando passar na média. Não a culpo pela nossa mediocridade – pelo menos, não completamente –, mas agora você deve entender porque eu quase disse: “não vale a pena”.

Não, não disse. Por incrível que pareça, ainda não joguei a toalha. E apesar do tom dessa carta, eu ainda acredito em você, USP. Apesar de todas as coisas as ruins que tivemos de ver e escrever sobre você, eu ainda a tenho como morada. E no final das contas, toda essa jornada ainda há de valer algo no currículo.

Arte: Fredy Alexandrakis