Entre o pó e as pérolas

Sobre a passagem do tempo e o que realmente importa

Por Ana Aires

Entro correndo no ônibus. Parece que estou atrasada. Sempre me sinto atrasada, mesmo quando não estou. “Mas que droga, onde coloquei meu Bilhete Único?”, reclamo mentalmente pela vigésima vez no dia e ainda não é nem meio dia. Revirando a bolsa, aos tropeços, reclamo pela vigésima primeira vez, com um palavrão. Não percebo o casal de idosos entrando de forma serena, sem a pressa que parece sempre me acompanhar. Respiro fundo e, sem querer, estou distraída prestando atenção na conversa do casal grisalho.

– Será que aceitam o seu bilhete? – a senhora pergunta de forma retórica, apontando para o BOM – o bilhete intermunicipal – que seu fiel companheiro segurava. Respondo a conversa silenciosamente e digo “não” em uníssono com a resposta do cobrador. A senhora sorri e reproduz a negativa em leve tom para seu marido.

– Passe você para sentar… Ali tem um lugar vago – o senhorzinho diz, apontando para uma cadeira amarela do lado de lá da catraca – Você tem os dois cartões. Pode deixar que eu desço pela frente.

Ela ri. Ri tão leve. Pousa a mão sob a dele, apoiada em uma das barras e responde:

– Eu não. Se você não consegue passar, então vou ficar e te acompanhar aqui.

Nesse meio tempo, encontrei meu Bilhete Único, mas continuei imóvel, observando a simplicidade, cumplicidade e plenitude que aquele casal emanava. Senti o peso de todas as minhas preocupações se dispersarem por alguns instantes. Por que eu estava correndo, afinal? De que eu estava correndo? Por que estava tão preocupada? Irritada? Não sei… O que era tão importante?

Com o olhar distante, me equilibrando no aglomerado de pessoas, lembro de uma das vezes que meu pai precisou fazer um rabo de cavalo no meu cabelo para eu ir para a escola. Eu sempre ia de rabo de cavalo para a escola. Minha mãe, que sempre prendia meus cabelos, estava fora. Meu pai fez o rabo de cavalo. Simples. Macio. Leve. Com um elástico vermelho. Mas, importante. Fazia quanto tempo que, como naquela manhã, eu não dizia um “eu te amo, papai”?

Pisco algumas vezes e estico minhas bochechas em um sorriso nostálgico. Olho o relógio. Sempre estou cronometrando as coisas, fazendo-as caber no meu schedule de planilhas cheias de quadradinhos imaginários. O que é tão importante? Rio. Quem dera minhas preocupações e ansiedades de hoje fossem tão mínimas quanto as da menininha com o elástico vermelho: morria de medo de ser a última a terminar o exercício e ter menos tempo para brincar no parquinho.

Meu sorriso desmancha. Olho para o trânsito. O salto alto me desequilibra no ônibus. Talvez, só talvez, minhas inquietações fossem, também, tão mínimas quanto aquelas. Da mesma forma que, ao se materializarem e calejarem com o tempo, se tornaram pó o medo de dar o meu primeiro beijo, de tirar uma nota baixa, de escolher a faculdade errada e de assumir responsabilidades que meus pais costumavam tomar para si. Alguns dos meus piores tormentos se metamorfosearam em parte do sopro da minha risada na virada dos tempos da minha vida.

Pego meu celular. Ele indica trinta e poucas mensagens não lidas. Mais de metade delas não sei se estou com vontade de ler. Abro mesmo assim. “E se for importante?”. O que é tão importante?! Talvez a mensagem de uma amiga do ensino fundamental que mudou de cidade.

“Migaaa. Como anda? Quero te ver!”, ela digitou, com o jeitinho de sempre.

Marcada em minha memória, podia sentir as cócegas no ouvido que causava o som de sua gargalhada. Deitadas em colchões infláveis, com pijamas rosas, acampando uma no quarto da outra, contávamos nossos segredos como se fossem realizações inéditas e peculiares, dignas de serem mantidas sob sigilo. Ah! Que leve era o peso do ensino fundamental: as contas de divisão, os subnicks no MSN e os cinemas aos finais de semana.

Pena que estou com pressa e já já vou precisar descer. Talvez mais tarde eu retorne. Ou talvez a conversa só termine como da última vez, com mais uma do “vamos marcar” e nada de “bebendo no bar”.

Chego cedo no estágio. “Mas poderia ter chegado mais cedo!”, retruco, quase me corrigindo. Tudo bem. No elevador, subindo para o décimo andar, reflito sobre como me sinto realizando algumas das minhas grandes e ambiciosas metas de anos atrás. Uma coisa que acompanha nossos anos de crescimento são as perguntas sobre o que queremos ser. Eu sempre quis estudar na USP. Fazer o que? Fazer USP. Já quis ser de professora a engenheira, matemática e literata. No final de todos os dilemas, a gente só descobre que quer ser alguma coisa que dê certo. E lá estava eu no oitavo andar, a dois andares do “alguma coisa que deu certo”. E o que era mesmo tão importante?

Não sei o que vai ser imprescindível pra mim nos anos que virão. Talvez pequenos agrados cotidianos do amor da minha vida – como deixar de sentar, mesmo cansado e desgastado pelo tempo, para estar junto de mim – sejam responsáveis pelos sorrisos dos meus dias. Talvez amarrar os cabelos de minha filha pela manhã seja tão ou até mais valioso que o maior compromisso do meu dia. Talvez o tempo não seja mais essencial quando eu deitar na cama, com um pijama de flanela rosa, programando um piquenique com uma amiga que não vejo há anos.

Algumas importâncias me parecem claras agora. Nas risadas. Nas inconsequências e imprudências. No espontâneo e autêntico. Nas pequenas realizações. Nos medos. Naquilo que um dia será memorável como parte única da minha existência. Certa vez ouvi que tudo na vida ou é pó, ou pérola. Toda pérola um dia foi pó, mas nem todo pó um dia será pérola.

Cumprimento o recepcionista com um sorriso largo. Respondo minha amiga perguntando se ela está livre no final de semana. Aproveito a oportunidade e envio um “eu te amo” pro meu pai. De noite eu ia para a aula, mas, ah! Que mal tem eu ir ao jogo com meu namorado? Deixando de lado todo o pó dos desagrados que serão levados pelo vento, prometo para mim mesma cultivar as partículas essenciais e desvalorizadas que, com paciência e tempo, serão minhas pérolas.

Vejo um casal de idosos subindo no ônibus, lá embaixo. Distantes, mas tão próximos. Sorrio.

(Arte: Fredy Alexandrakis)