Quem vai à festa, vai à luta

JC acompanha coletivos da USP e outros ativistas nas marchas lésbica, bi, trans e LGBTI+

(foto: Matheus Morgado)

Por Matheus Morgado e Rafael Paiva

72 horas de luta e celebração. Os três primeiros dias de junho foram de visibilidade e reconhecimento para a população e as causas LGBTI+, em São Paulo. Entre cartazes de manifestação e o glitter das fantasias, a comunidade se uniu para demonstrar sua força e reivindicar espaço na sociedade.

No Mês da Diversidade, o JC acompanhou três eventos que demonstram a pluralidade do movimento e de suas pautas: a Marcha do Orgulho Trans, a Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais e a Parada do Orgulho LGBTI+.

O pontapé inicial foi dado no número 255 da rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo. Mas com o pé esquerdo. Fomos ao Edifício Califórnia, onde está a sede da ONG responsável pela Parada paulistana, uma das maiores do mundo, para observar de perto os momentos finais da organização do evento. A resposta, sem surpresas: “Não. Impossível”.

Na saída, a ascensorista do prédio ainda nos deu a dica: “Sexta-feira vai ser bem movimentado aí. O pessoal vem buscar as pulseiras para os trios”. No entanto, a movimentação das ruas se tornou o foco, e na sexta, dia 1º, ocorreria a primeira edição da Marcha do Orgulho Trans de São Paulo.

Faixa à frente da 1ª Marcha do Orgulho Trans de São Paulo (foto: Matheus Morgado)

As vozes

“Travesti empoderada / no rap escancara / a realidade de quem já apanhou / muito por ser trava”. Por volta das 16h, chegamos ao Largo do Arouche e MC Dellacroix entoava seus versos em cima do trio. A rapper, de letras intensas e politizadas, marca sua presença enquanto travesti preta, como a própria faz questão de repetir.

“Eu acho importante a marcha porque já estamos há anos com a Parada que se diz LGBT, mas ainda não é um espaço confortável pros nossos corpos, pras pessoas travestis, pras pessoas não binárias, pros corpos estranhos.”

Às 17h, o percurso da marcha pelo centro da cidade começou, e era visível a importância do ato para os presentes. Com frequência, era gritado e enfatizado, de cima do trio, o fato de aquela ser a primeira voltada exclusivamente à população trans.

Segundo o site da organização da marcha, sua importância se justifica pelo fato de, “no caso da comunidade LGBT, homens brancos cisgênero homossexuais têm privilégios que os colocam no front dos movimentos, enquanto as travestis e mulheres transexuais pretas que vivem nas periferias das metrópoles ou no interior do Brasil mal conseguem se articular socialmente para a compreensão da sua própria humanidade.”

No dia seguinte, as mulheres lésbicas e bissexuais tomaram conta da Avenida Paulista. Foi a 16ª edição da Caminhada, que retornou ao seu percurso original: da Praça Oswaldo Cruz ao Museu de Arte de São Paulo (MASP). O tema: “Somos Marielle: contra a criminalização da pobreza, o genocídio e a intervenção militar”.

Concentração da 16ª Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de SP (foto: Matheus Morgado)

O trajeto foi marcado por momentos distintos: de início, ainda na concentração, falas escancararam as mazelas que enfrentam perante a sociedade. Já em marcha, o ato seguiu em tom celebrativo, ao som dos tambores da bateria do bloco “Siga Bem Caminhoneira”. Próximo ao encerramento, sobretudo em frente ao prédio da FIESP, não faltaram palavras de protesto contra políticos e militares.

“Não acabou, tem que acabar. Eu quero o fim da Polícia Militar!”

“A verdade é dura, a FIESP apoiou a ditadura. E ainda apoia!”

“Por Marielle, eu digo ‘não’… Eu digo ‘não’ à intervenção!”

A invisibilização foi pauta novamente. “Nos quiseram invisíveis mas nós, lésbicas, sempre fomos história”, dizia um cartaz. De acordo com o panfleto distribuído durante a manifestação, as principais reivindicações da comunidade giram em torno da legitimação de suas vozes e direitos.

Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, assassinada em março passado e tema desta edição da caminhada, esteve presente e falou ao JC.

“A gente entende, dentro de um contexto de uma sociedade patriarcal, machista, que a gente tem que continuar diariamente resistindo, lutando, colocando nossos corpos a serviço da política. O corpo de cada LGBT é político, da mulher lésbica tem que ser de resistência, a gente tem que se colocar nesse lugar.”

Cartaz durante a Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais (foto: Matheus Morgado)

Uspianos em marcha

Em meio às manifestantes de sábado, um grupo da Universidade levanta um cartaz que as identifica: Coletivo de Resistência Lésbica da USP. Eram cinco mulheres representando o recém-criado espaço de fortalecimento da letra “L” dentro do contexto uspiano.

A motivação veio de uma necessidade de se sentirem totalmente representadas dentro de um grupo, assim como para encontrar outras estudantes lésbicas nos diversos institutos.

“Onde elas estão? Em quais cursos?”, questionou Carolina Barroso, aluna do curso de Letras. “Nos coletivos LGBT e feminista é difícil ter espaço para lésbicas, apesar de estarmos dentro. Em cada um desses, a gente fica pela metade. Não existe nenhum coletivo que contemple a gente totalmente.”

Coletivo de Resistência Lésbica da USP durante a Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais (foto: Matheus Morgado)

No final de maio, o coletivo criou sua página no Facebook e disponibilizou um formulário para estabelecer o primeiro contato com as mulheres lésbicas da USP. De acordo com as integrantes do grupo, 50 pessoas enviaram respostas apenas no primeiro dia.

“É importante para a gente, como mulheres lésbicas, se organizar para além da Parada. É importante que a gente consiga ser ouvida”, afirmou Nina Moreira, também estudante de Letras.

No domingo, ao chegarmos à Paulista, pela manhã, notamos uma roda de conversa na avenida ainda esvaziada. Enquanto nos trios eram feitos os últimos ajustes, o Coletivo Ferro’s, da Faculdade de Direito da USP, debatia sobre as questões LGBT na política, seguindo o tema deste ano da Parada: “Poder para LGBTI+. Nosso Voto, Nossa Voz”.

Eduardo Rocha, 21 anos, explica a origem do nome do coletivo: “o Ferro’s era um bar na Bela Vista onde houve um levante muito parecido com o Stonewall, nos EUA, de a polícia entrar lá e tudo mais. A gente se chama Ferro’s por isso: por ser um espaço de resistência, que a gente tem vozes múltiplas, desde pessoas organizadas politicamente a não organizadas, homens, mulheres, pretas, brancas, de várias origens”.

“A função do coletivo é justamente mostrar para quem conseguiu entrar na Universidade que a LGBTfobia ainda não acabou. A gente precisa, sim, de um espaço pra gente estar organizado e conseguir lutar contra essas coisas ativamente”, defende João Conceição, 19 anos.

Coletivo Ferro’s, da Faculdade de Direito da USP, durante a 22ª Parada do Orgulho LGBTI+ de SP (foto: Rodrigo Brucoli)

O amor e o poder

A Parada do Orgulho LGBTI+ chegou a sua 22ª edição como um dos maiores e mais atrativos eventos da cidade de São Paulo. O tom político e de resistência esteve presente, a começar pelo tema, mas é característico o clima festivo e exuberante do desfile.

Seu potencial turístico e econômico denota a importância da manifestação para a agenda cultural paulistana, que atrai patrocinadores de peso e celebridades. Preta Gil, Pabllo Vittar, Gretchen e Fernanda Lima foram algumas das participações ilustres. Mas era Anitta que a funcionária pública Olga Ávila, 64 anos, queria assistir.

“É a primeira vez que venho. Moro na Peixoto Gomide e vim com uma vizinha. Acho que é uma festa muito legal, em que todos participam. Vim para ver a Anitta. Fiquei muito feliz, filho, com a apresentação”. Sobre o clima do evento, ela não hesitou:  “A palavra chave é respeito. Respeitar as diferenças.”

A anfitriã da Parada, a drag queen Tchaka e a apresentadora Fernanda Lima durante a abertura do evento (foto: Rodrigo Brucoli)

Enquanto alguns tiveram sua primeira experiência, outros já são presença constante. Guilherme Souza é veterano na celebração: “Venho todo ano. Não deixo de perder uma. Tem uma vibe muito boa. Só que está um frio do caralho. Fora isso…”

No meio da multidão, um grupo de adolescentes chamou atenção pelo entusiasmo. Ao verem nossa equipe, pediram para que o fotógrafo registrasse o momento de alegria. Tinham entre 16 e 17 anos. Em uma rápida troca de palavras, contaram que estavam ali sem informar os pais, por medo de uma reação negativa.

Estudantes de um colégio conservador do bairro da Penha, zona Leste da cidade, relataram que não têm espaço para a questões LGBTI+ em sala de aula ou na família, apesar de afirmarem se identificar com diversas letras da sigla.

Para eles, o acolhimento e o afeto vêm por parte de amigos, que estavam ali unidos, e a Parada era uma oportunidade de serem livres.

Momentos antes, no segundo trio do desfile, um outro cenário: as Mães Pela Diversidade. O grupo é formado por aquelas que se uniram em prol da pluralidade sexual e de gênero de seus filhos contra a homo e transfobia. É um dos carros-chefe da Parada há 5 anos e representa uma quebra de paradigma no que diz respeito a pais de LGBTs. A frase de ordem era: “A criança LGBT existe!”

Em entrevista ao JC, a fundadora Majú Giorgi contou que estão organizados em associação há 3 anos, mas que o grupo existe há 10. A motivação para criar a ONG veio do filho, o fotógrafo André Giorgi. “Poucos filhos têm a experiência de entrar na Paulista com cem mães berrando, defendendo os nossos direitos e tudo mais. É incrível”, expressou André.

Durante a Marcha do Orgulho Trans, duas integrantes do coletivo subiram ao trio e discursaram em tom emocionado: “Muito obrigado por nos darem a honra de sermos mães de vocês também”.

Moradores da Av. Paulista saem às janelas em apoio à Parada LGBTI+ (foto: Rodrigo Brucoli)

Presente!

Tão importante e diversa quanto a própria Parada é o trajeto até ela. Entre as multidões nos trens da Linha Verde do metrô, que atende a Avenida Paulista, membros da Igreja Cidade de Refúgio, de matriz cristã, cantavam músicas de louvor que se misturavam a frases como “Jesus é salvador, ele sabe que eu sou gay”.

A pastora Aline Leão contou que a igreja, cuja sede paulistana fica no bairro de Santa Cecília, existe há sete anos, e que desde o início participam da Parada. Apesar da maioria dos membros virem de famílias evangélicas, ela explica que o grupo recebe todos que se sentem excluídos da sociedade e que queiram buscar a palavra de Deus.

A reação do restante dos passageiros daquele vagão, no entanto, foi distinta. Enquanto alguns compreenderam o objetivo do grupo, outros concluíram que se tratava de uma manifestação contrária à Parada. “Vocês já têm o seu dia!”, gritou um dos passageiros, se referindo à Marcha Para Jesus, que havia ocorrido três dias antes.

Enquanto isso, os louvores adaptados eram entoados a plenos pulmões, com um dos integrantes cantando em falsete, em estilo diva pop. O clima de aceitação e acolhimento entre os integrantes era evidente, e assim permaneciam apesar das reações precipitadas.

Mônica Benício, viúva de Marielle Franco, durante a abertura da 22ª Parada do Orgulho LGBTI+ (foto: Rodrigo Brucoli)

Durante as falas de abertura do evento, que traziam o teor politizado do tema deste ano, foram ouvidas vaias após o anúncio de que políticos discursariam. A insatisfação com o cenário político, sentida em todo o país, estava refletida no ato. Foi necessária uma intervenção da anfitriã Tchaka, que fez um discurso apaziguador, argumentando que aqueles em cima do trio eram aliados, e estavam ali porque lutam, também, pelos direitos da comunidade.

Leci Brandão, deputada estadual pelo PCdoB, relacionou as pautas LGBTI+ às mulheres e aos negros. Manuela D’Ávila, pré-candidata à Presidência pelo mesmo partido, ressaltou a necessidade de mulheres na política. Mas o tom maior do levante era “Marielle, presente!”. Homenageada nos três atos, ela parece ser a intersecção entre a festa e a luta neste ano.

Como refletiu Mônica Benício: “O legado da Marielle está em cada LGBT que se levanta toda manhã e diz que vai amar sem temer, que vai amar sobre qualquer tipo de resistência, que não vai ser silenciado, que não vai se calar. O legado da Marielle é com cada pessoa que acha que a sociedade pode ser mais justa e que luta por isso, e que se coloca à disposição, socialmente, para continuar essa luta. A política dela era construída com afeto, a nossa política é construída com afeto, e é isso que a gente vai continuar construindo”.

Da esquerda para a direita, as bandeiras da comunidade bissexual, das pessoas trans, e das mulheres lésbicas (foto: Matheus Morgado)