João descobre tudo

Por Giovanna Jarandilha

Foto: Arthur Aleixo

Nasceu de uma palavra. Depois de horas imorais de parto, sua mãe gritou “Deus!”, em súplica, e assim ele foi excomungado do ventre – como fruto da palavra.

Caiu como cuspe com a bochecha no asfalto. Estava quente, tão quente que a pele aveludada do seu rosto ficou irritada com a aspereza do primeiro berço. Seus olhos embaçaram e não enxergava nada quando abriu a boca e berrou. Mas ainda assim pôde ver, entre os carros, na pilastra à sua frente, uma mancha preta tingida no concreto.  

Duas mãos o tiraram da poça de sangue e o colocaram sobre o colo suado. Mãe. Afagou sua cabeça entre os seios, e enunciou as quatro letras que o tornaram humano: João.

Nua rua, cresceu. Acostumou-se com o calor, com o som dos pneus e com o choro da sua mãe. Também se acostumou com a pontada incessante nas entranhas que descobriu, ainda menino, ser fome.

Os anos, porém, não lhe ensinaram o significado do escrito do outro lado da avenida. As letras nada lhe diziam. Desconhecia as palavras, e nas palavras lhe escapava muito do resto.

Passava as manhãs avizinhado da faixa de pedestre, costurando entre os carros, desgastando a sola do chinelo e sentindo o sol beijar sua clavícula. Fez isso com a mãe, e depois sem ela, verão atrás de verão, até que soube de tudo.

Era uma noite solitária, seus olhos piscavam devagar enquanto o calor da fogueira dançava ao redor de seu corpo. Possuído pelo cansaço, era recebido nos portões do sono, quando de repente um homem se deteve diante de seus pés.

“O que você quer, menino?”. De sobressalto, João endireitou o corpo e franziu as sobrancelhas, confuso. “O que quer?”, inquiriu o homem, mais irritado. Um capuz fazia sombra sobre seus olhos, de modo que àquela luz escarlate só era possível enxergar o contorno de suas palavras.

“Não quero nada, não senhor”, balbuciou esfregando os olhos. O homem se curvou para frente, tão perto que pôde sentir o sabor do seu hálito. “Ah, menino, mas todo mundo quer alguma coisa. Vamos lá, diga o que quer, que faço ser seu”. João abriu um sorriso insolente e rebateu: “pois então quero tudo”.

E caiu no sono mais profundo que jamais conheceu. Despertou com a morte de todos os seus demônios, apenas para se abrir para a dor última: a agonia de tudo.

Nasceu para o mundo. Seus olhos embaçaram e enxergou tudo como se fosse a primeira vez. Abriu a boca e sorriu. A mancha preta do outro lado da avenida tomou forma diante de seus olhos, e no traçado do concreto ele leu ‘Gênese’.

Levantou-se com um pedaço de carvão na mão. Cruzou a via e tocou com o indicador toda a extensão da palavra. Empunhou sua arma e rabiscou furiosamente uma façanha na parede.

Deu alguns passos para trás, e com o deleite do conhecimento no peito, ele reconheceu na própria caligrafia: ‘no princípio era o Verbo’. Sentiu seus ossos serem percorridos pelo calor do gozo mais solar e floresceu em mil pedaços ao ser atingido por um carro e voltar ao aconchego do seu primeiro berço.

João era o mundo.