“Ô coronavírus, os ocidentais só estão infectados por causa de vocês”

Comunidade leste-asiática é culpabilizada e reduzida a uma doença em meio à pandemia

Por Caroline Aragaki e Mayumi Yamasaki

Ilustração: Renan Sousa

São coisas “pequenas” no dia a dia que vão fazendo nossa cabeça, sabe? Agora, quando estou em espaços públicos tento me esforçar ao máximo para parecer saudável. Coçar o nariz, tossir, espirrar, fungar… nunca mais me senti confortável em fazê-lo.

A pandemia de coronavírus está provocando mudanças na rotina das populações, já que envolve um novo patógeno e é de fácil disseminação. O relato de Millena Miyuki Mori, estudante de Engenharia, exemplifica como parte da comunidade de ascendência leste-asiática ou amarela – constituída por chineses, coreanos e japoneses – reage após ser alvo da xenofobia.

“Uma doença não pode gerar discriminação, nem conduzir a uma estigmatização. Se uma pesquisa sobre um surto ou epidemia mostrar que se iniciou de determinada maneira em uma população específica, isto pode indicar quais são os públicos-alvo para intervenções específicas, mas isto não deve levar a um preconceito”, afirma o epidemiologista Fredi Alexander Diaz Quijano, da USP.

A busca por um culpado em situações de epidemia faz parte dos mecanismos de defesa para manutenção de poder e controle sobre grupos discriminados e vulneráveis, segundo Laura Ueno, doutoranda em Psicologia Social pela USP, que estuda as relações inter-raciais.

A psicóloga lembra que, nos anos 1980, a Aids foi associada a um castigo contra a população homossexual e africana pelo continente em que surgiu. “O conceito das sociedades ocidentais brancas como superiores e civilizadas se mantém através da estigmatização de aspectos considerados ‘desviantes’ de outras culturas, como hábitos de higiene e alimentação”, completa Ueno.

Essa visão é compartilhada por Marina Yukawa, jornalista pela USP e autora do livro Sorrisos Amarelos: Histórias de jovens mulheres orientais no Brasil. “A população amarela é limitada em dois extremos, e tudo o que foge ao esperado é negado”, explica.

O primeiro extremo é o de minoria modelo, que retrata leste-asiáticos como inteligentes e próximos de uma perfeição impraticável. O segundo segue para a exotificação, tratando-os de modo fetichizado, misterioso e até chegando a retratos ligados à bizarrice.

Em um vídeo que viralizou em janeiro, uma mulher chinesa sorri enquanto mostra um morcego cozido e diz que “tem gosto de frango”. A repercussão teve alegações de que os hábitos alimentares na China propiciaram a expansão do coronavírus. No entanto, o vídeo data de 2016 e foi filmado em Palau, um arquipélago no oceano Pacífico.

Para a professora de Jornalismo da USP, Eun Yung Park, “a disseminação de ideias incorretas sobre o assunto não se resume a racismo e xenofobia, pois falta uma democratização da informação na própria China”. Ela explica que a postura mais fechada do país estimula a imaginação e curiosidade das pessoas, em meio a estigmas já atrelados à região.

Após a doença se alastrar, no entanto, o governo chinês passou a adotar uma maior transparência quanto a isso. É o que afirma Alexandre Uehara, doutor em Ciência Política pela USP, que prossegue: “A comunidade médica da China tem trabalhado em conjunto com outros países. O governo reconheceu o problema e está divulgando informações, mas existe sim a desconfiança de que elas não sejam completas e transparentes”.

O crescimento econômico que a China teve nos últimos 20 anos também favoreceu indiretamente as ações xenofóbicas contra sua população, de acordo com Uehara. O discurso eleitoral usado por Donald Trump em 2016 denota como os Estados Unidos tem culpado os asiáticos por seus problemas econômicos. “O fato de a doença ter começado lá facilita a repetição dessa narrativa”, complementa.

Ueno sintetiza essa ideia ao explicar que as epidemias têm o poder de expor os medos e tensões já presentes na sociedade. Ela acredita que esse fator favorece a insensatez quando é associado ao individualismo. “Os processos de estereotipia são caracterizados pela irracionalidade ao não serem facilmente modificados por argumentos e evidências contrários”, comenta a psicóloga.

Durante o carnaval, a estudante de cursinho pré-vestibular Jessie Shen escutou muitas ‘piadinhas’ sobre coronavírus. “Percebi que todos os meus amigos com ascendência leste-asiática, sem exceção, passaram por isso em algum bloco de rua, e isso só aconteceu com a comunidade amarela.” O mesmo ocorreu com a atriz Ana Hikari, que divulgou o caso via Twitter.

Apesar da xenofobia associada ao coronavírus ter tido os amarelos como foco inicial, Uehara crê que recentemente a aversão aos estrangeiros se expandiu. “De início, isso foi realmente contra os chineses, mas agora essa xenofobia está mais ampla porque as pessoas estão com medo de qualquer um que venha da Europa”, analisa.

NOTA

O primeiro caso de coronavírus no Brasil foi confirmado em 27 de fevereiro, com um homem que viajou à Itália e retornou para São Paulo. Antes disso, o edifício comercial Berrini 550 — da Zona Sul da capital paulista — já aplicava “medidas preventivas” feitas exclusivamente para chineses: “usar máscaras cirúrgicas; utilizar apenas o elevador privativo; higienizar as mãos com álcool em gel”. Na época, o prédio recebeu várias críticas e acabou se retratando.

Com outros casos similares, membros da comunidade amarela brasileira publicaram a hashtag “eu não sou um vírus”, que surgiu na França e influenciou outros países. A repercussão foi tanta que Chenta Tsai, de Taiwan, desfilou na Madrid Fashion Week com a frase escrita no peito.

No Brasil, a xenofobia é crime desde 1989. A discriminação de raça, cor e etnia é condenada pela Lei do Racismo, nº 7.716. Por sua vez, a injúria racial é definida pelo artigo 140 do Código Penal. Em ambas, a pena é de um a três anos de reclusão, além de multa.