Vencedor do Prêmio Vladimir Herzog conta a história por trás da obra

 

por Mariana Catacci

O jornalista Yan Boechat foi o vencedor do 42º Prêmio Vladimir Herzog de Fotografia por seu ensaio no município de Manaus, onde fotografou vítimas da pandemia que morreram em seus domicílios. O ensaio inspirou a matéria Durante a crise da Covid-19, mais de 30% dos óbitos ocorrem em casa em Manaus, do O Globo. O JC entrevistou o jornalista e fotógrafo para entender os processos por trás da obra vencedora.

“Manaus (Brasil) – 30/04/2020 – O corpo de Francisca Ribeiro Bentes, 75 anos, deitado em sua cama. Por 15 dias, ela teve sintomas de Covid-19. Ela tentou ver um médico no hospital, mas nenhum estava disponível. Ela morreu tendo dificuldade para respirar.”  Foto e legenda: Yan Boechat

 

Como surgiu a ideia de fazer o ensaio? Foi uma ideia sua ou uma pauta previamente definida?

Yan: Eu já vinha cobrindo a covid-19 desde que a pandemia chegou ao Brasil. Quando a quarentena teve início, na metade de março, eu comecei a ir para a rua todos os dias. Comecei a buscar histórias relacionadas à pandemia, sobre como ela iria nos impactar. Comecei dando muita atenção ao centro de São Paulo, aos moradores de rua, à Cracolândia. Depois foquei nos cemitérios, fiz muito plantão nos cemitérios e nos hospitais. Fiz boas matérias nesses locais, consegui encontrar histórias que davam vida aos números.

Quando percebi que a coisa estava saindo do controle em Manaus eu comecei a me preparar para ir para lá. Então, um dia eu vi uma entrevista do Arthur Virgílio, o prefeito de Manaus, dizendo que 30% das mortes por lá estavam acontecendo nos domicílios. Naquele mesmo dia eu comprei uma passagem, reservei um hotel e fui. Decidi ir mesmo sem vender nada para ninguém, achei que valia a pena o risco.

Ao longo dos últimos anos tenho sido um freelancer, muitas vezes eu faço primeiro o investimento, vou atrás das histórias que acho importantes e depois ofereço para meus clientes. Eu tenho uma boa relação com O Globo, volta e meia eu vendia matérias para eles. Então, ofereci um ensaio, eles aceitaram e publicamos.

Como foi o processo de encontrar pessoas dispostas a deixar que você fotografasse um espaço e um momento tão íntimo?

Yan: Quando cheguei a Manaus, eu decidi procurar a prefeitura para entender como era o sistema de recolhimento dos corpos nas residências. Aí conheci o SOS Funeral, um serviço da prefeitura que oferecia serviço funeral para qualquer família. Então, o que eu fiz foi fazer plantão lá e acompanhar as equipes. Quando eu chegava ao local, eu explicava para as pessoas o que estava fazendo, que apesar do momento difícil, era também um momento histórico que estávamos vivendo. A maior parte das pessoas autorizou o registro, pedia respeito, mas me permitia fazer as fotos. Foram poucas famílias que proibiram.

Quantas casas e outras localidades você visitou em Manaus?

Yan: Não sei ao certo, mas é bem provável que tenha sido entre 15 e 20 casas, imagino.


Foto: Yan Boechat

 

Quanto tempo, em média, você passava em cada localização?

Yan: Dependia muito. Como eu estava acompanhando o pessoal do SOS Funeral, eu ficava o tempo que eles ficavam. Às vezes era muito rápido, vinte ou trinta minutos, até menos. Às vezes, mais de uma hora.

Como encontrar o limite entre uma boa foto e uma foto sensacionalista ou que gera muita exposição, em uma situação tão delicada como essa?

Yan: Eu não tenho exatamente essa preocupação quando estou fotografando. Fotografo tudo. Meu objetivo é mostrar aquilo que está ali, diante dos meus olhos. Há uma grande discussão sobre como a violência deve ser retratada pelo jornalismo. Há bons argumentos nos dois lados, e tendo a achar os dois válidos. Mas, ao final, acho que a violência deveria ser retratada como ela é, de fato. A primeira vez que a violência foi retratada de forma crua foi na Guerra Civil americana. Foi um choque. A ideia de que a guerra é algo honrado, repleto de glórias, de feitos heroicos, tudo isso foi por terra com as fotografias bastante gráficas de Mathew Brady. As cenas dos corpos dilacerados chocou o público e enfureceu o governo. 

Desde então, há uma tentativa de minimizar o choque que cenas de violência causam na audiência. Nos últimos anos, cobrindo várias guerras, passei a acreditar que, muitas vezes, o risco de fazer sensacionalismo é menor do que o de maquiar a guerra e a violência. A guerra é feia e deveria ser mostrada assim. Gilles Peress tentou fazer isso em Ruanda. Mas, resumindo, eu fiz essas fotos com o objetivo de mostrar como as pessoas estavam morrendo em suas casas. Foi um registro documental, a questão do sensacionalismo não me veio à mente quando fiz essas fotos.

 

Quais critérios estéticos você utilizou para escolher as melhores fotos?

Yan: Eu sigo uma lição aparentemente paradoxal que aprendi com um grande fotógrafo, o Carlos Moreira. Ele defendia a ideia de que a foto é mais importante do que o assunto que ela registra, ou seja, independentemente do que você está fotografando, os atributos inerentes à fotografia – estéticos, de composição, de referências, de complexidade – devem ser mais importantes. Essa é uma visão paradoxal, porque uma grande foto depende, claro, do que você fotografa, do assunto. Mas, ao mesmo tempo, só o registro de um grande momento, não basta para que a foto seja boa. Vira só isso, um registro. Então, há esse paradoxo, e eu o sigo. Quero fotografar situações incríveis, histórias, inusitadas, mas a foto em si precisa ser maior do que o que estou fotografando. Obviamente, há uma subjetividade imensa nessa escolha, nessas decisões.

Teve alguma situação que te marcou em especial durante a produção?

Yan: O que me marcou foi ver como os padrões das tragédias se repetem no Brasil, seja por conta da violência, seja por conta dos desastres naturais, seja por uma pandemia. Morre tragicamente no Brasil quem é pobre, quem é desassistido, quem não consegue ter seus direitos mais básicos respeitados. Isso me impressiona permanentemente, como esse país pode ser tão injusto, tão desigual.

Você pode comentar um pouco sobre ter ganhado o Prêmio Vladimir Herzog? Como enxerga esse prêmio e esse trabalho dentro da sua atuação como profissional?

Yan: Quase sempre, eu acho que prêmios são incapazes de definir quais são os melhores trabalhos de um ano, de um determinado período ou de um assunto. As escolhas são subjetivas e profundamente influenciadas por componentes políticos, culturais e por pressões diversas. Cada prêmio premia o que melhor representa o que ele pensa do mundo, o que ele acha ser mais adequado a sua proposta. Logo, não é uma decisão absoluta, que define quem é bom, ou os melhores. Mas, sim, aqueles que realizaram trabalhos que estão alinhados com a proposta do prêmio. No caso do Prêmio Vladimir Herzog (PVH), isso é muito claro. A comissão final que julga os vencedores é formada por “leigos”, ou seja, profissionais que não são fotógrafos e não estão exatamente interessados nas pequenas filigranas da fotografia. É, antes de tudo, um prêmio político. Obviamente, fiquei muito feliz em ser escolhido, é um reconhecimento importante. Acho que hoje o PVH é o maior prêmio do jornalismo brasileiro e eu fiquei extremamente honrado em ter sido escolhido o vencedor deste ano.

Como você acha que esse trabalho conversa com sua carreira na fotografia?

Yan: Acho que, de certa forma, foi um avanço. Porque, em geral, eu fotografo para as matérias que escrevo. Ou seja, a fotografia é um suporte pro meu trabalho como repórter. Eu vendo os pacotes de texto e foto. Neste caso específico, eu fiquei interessado em fazer uma cobertura fotográfica mesmo, algo que nem sempre faço.

“Manaus (Brasil) – 29/04/2020 – O corpo de um homem que morreu com sintomas da Covid-19 aguarda em uma saleta pela chegada de um médico que irá lavrar o atestado de óbito.”  Foto e legenda: Yan Boechat

 

As imagens e legendas deste texto foram gentilmente cedidas por Yan Boechat.