Senzala e Alforria dentro da Universidade de São Paulo

Com a crescente força de movimentos negros Repúblicas Escravocratas sofrem pressão da opinião pública e sociedade

 

por Gabriel Cillo

Foto: Julia Nagle

O movimento negro, nos últimos tempos, tem ganhado cada vez maior notoriedade na grande mídia, principalemente após diversos casos de violência contra pessoas negras, que chocaram a opinião pública. O de maior destaque — tanto na imprensa brasileira quanto na internacional —, ocorreu no final de maio, com o assassinato de George Floyd, de 46 anos, no bairro de Powderhorn, na cidade de Minneapolis, Minnesota, Estados Unidos (EUA). Um homem preto morto por um policial branco, chamado Derek Chauvin, que com requintes de crueldade pressionou o pescoço de Floyd com o joelho, o asfixiando até a morte, enquanto a vítima estava rendida, imóvel, algemada e de bruços no chão.

Episódios de violência como o de Floyd são artigos diários nos jornais e revistas brasileiros. Como o assassinato de João Pedro Mattos, de 14 anos, por agentes do Estado do Rio de Janeiro, ao dispararem mais de 70 tiros em direção a casa onde a vítima e mais outros jovens brincavam, em São Gonçalo. Um segundo caso, a morte da menina Ágatha Vitória Sales Félix, de oito anos, ao ser atingida por um tiro nas costas, no Complexo do Alemão. Outro, um jovem de 26 anos, Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, morador da favela Chapéu Mangueira, que ao descer a ladeira, para esperar a esposa e os filhos, levou três tiros no peito ao confundirem seu guarda-chuva com um fuzil.

E qual a culpa de todas essas pessoas assassinadas? Sua cor da pele, seu cabelo, seu nariz e, principalmente, sua origem. Todas elas são vítimas de uma história escravocrata pulsante, que reflete diretamente numa sociedade embebida no racismo estrutural. Nesse sentido, Floyd foi o estopim para a organização do movimento negro atual pelo mundo todo, a partir dos EUA, através do “Black Lives Matter” ou “Vidas Negras Importam”, em tradução livre, tendo Floyd como um símbolo de luta.

 

Repúblicas Escravocratas

 A USP, como uma instituição pública de ensino, e uma extensão da sociedade brasileira, evidentemente apresenta inúmeras circunstâncias relacionadas ao racismo. Como o caso de duas repúblicas, formadas por alunos da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), no campus de Piracicaba, que fazem referências explícitas à escravidão. Sendo uma masculina, denominada Senzala, e outra feminina, intitulada Alforria.

A república Senzala foi fundada em 1991, e desde o princípio seu símbolo pode ser classificado, minimamente, como polêmico. Mesmo com certos desconfortos ao longo de sua história, com críticas por parte de alunos e da comunidade, a república, da cidade do interior paulista, recebeu um baque apenas neste ano. Após copiosos protestos relacionados ao movimento “Vidas Negras Importam” por todo o Brasil, seus integrantes se sentiram pressionados — inclusive nas redes sociais — e como medida paliativa alteraram seu nome para “SZ”, mascarando a real origem da república.

Logo da República Senzala

 

Logo atual da República SZ

Evidentemente a possibilidade da criação e longevidade — quase 30 anos de existência — da república Senzala só é possível perante o contexto particular deste universo. Uma cidade do interior, com uma economia baseada historicamente em engenhos de cana-de-açucar, com mão de obra escrava. Além de um pensamento reacionário da maioria de sua população, facilmente confirmado ao analisar as urnas de 2018, que teve 80% dos votos válidos para o atual presidente da República, Jair Messias Bolsonaro.

Para alguns alunos da Esalq que tiveram contato com integrantes da república Senzala, chegando até a frequentar o ambiente da casa, não há uma perspectiva de mudança por parte de seus moradores, com nenhuma autocrítica sobre o significado e o simbolismo por trás do nome. “Eu como não nasci em Piracicaba, e vim de uma escola mais construtivista, assustei quando me deparei com essas repúblicas e com outras tradições da faculdade”. Como a prática recorrente de certos tipos de trotes, uma celebração no dia 13 de maio — data que pôs fim oficialmente a escravidão no Brasil —, como forma de libertação dos bixos. 

Ainda perante um olhar interno, alunos pontuam: “há uma obscura herança da ditadura em alguns ralos (trotes), como comer embaixo da mesa. Contudo, eu ainda acredito nas interações de algumas repúblicas, como forma de discussão, não se isolando na própria bolha, gerando mudança de pensamentos entre seus integrantes. Afinal, é melhor tentar o diálogo do que se isolar nos próprios pensamentos”.

      Logo da agora República Alforria

Já a república Alforria fundada em 2004, formada exclusivamente por mulheres, está em um processo de transformação um pouco mais acentuado que a Senzala, também por conta das pressões das manifestações deste ano. Segundo as moradoras ou ex-moradoras, a república não existe mais com esse nome. Infelizmente, não houve respostas precisas, ainda não há uma perspectiva muito certa do futuro, se irão manter alguma referência da antiga república, como fez a Senzala ao mudar seu nome oficialmente para “SZ”. “Eu como morador de república compreendo as dificuldades de uma mudança de nome por conta de antigos moradores, reconheço que a relação é conflituosa, de difícil diálogo”, confessou um aluno que reside em outra república da Esalq-USP.

Racismo Estrutural

A possibilidade da existência dessas referências extremamente racistas dentro da universidade pública encontra explicação no racismo estrutural. Afinal, o perfil do estudante de universidade pública, ainda mais no curso de Engenharia Agronômica da USP, em Piracicaba, é branco, hétero e integrante da elite socioeconômica. Por isso, os programas de ações afirmativas — tanto étnico-raciais, quanto socioeconômicos — são de extrema relevância como uma medida para aumentar a diversidade de alunos dentro desses locais pautados em uma espécie de segregação.

Segundo Thais Barbosa Passos, 38 anos, graduada em Pedagogia e mestra em educação, pela Unesp; e doutoranda em Educação, pela Faculdade de Educação da USP (FEUSP): “o povo preto não tem todas as condições e oportunidades, tendo baixa escolaridade e estando em condição de vulnerabilidade social”. Por conta desse cenário, o número de pesquisadores e professores universitários pretos ou pardos é ínfimo: “não vejo meus pares dentro da universidade, e eu queria muito”, complementou.

Ainda seguindo a lógica de representatividade, com o empoderamento dos negros, em seu lugar de fala, a jornalista Maria Lucia da Silva, professora da FMU Centro Universitário, e coordenadora do Núcleo de Estudos Étnicos-Raciais (NERA) fez um diagnóstico da mídia no Brasil: “o jornalismo brasileiro é racista, não há homens e mulheres negros em funções de destaque nas redações, sendo ouvidos. Estamos inseridos no racismo estrutural, no qual o negro só tem trabalho em rádio, onde não aparece sua cor, cabelo, boca, bunda, além de menor remuneração para os radialistas, em comparação com o impresso e a TV.

Foto: Julia Nagle

 

Sobre uma forma de combater o racismo reverberado por nomes como a Senzala e a Alforria, além de inúmeras ruas que levam nomes controversos, e também monumentos — como o caso famoso da estátua do Borba Gato —, há uma discussão quanto ao anacronismo de cada um. Afinal, o mundo e o pensamento se transformou, e o que era aceito anteriormente hoje não é mais. “Entender eu não entendo, por sofrer na pele essa violência. Mas uma alternativa seria dar voz para pautas negras, dando a oportunidade para os oprimidos, os vencidos contarem sua história. Um outro caminho seria a criação de um museu da escravatura, na mesma linha que também deveríamos ter um museu da ditadura. O Brasil precisa aprender a lidar com seus erros e dores”, relatou Thais Barbosa Passos.

Perante essa luta, há uma necessidade do povo negro se conhecer, olhar para própria história, saber suas origens. “O racismo no Brasil é algo velado, muito diferente dos EUA, por exemplo. E com isso, muitos irmãos não se identificam como pretos, e assim que coloca um tênis ou uma bota de PM acaba pisando no pé, com chinelo de dedo, do outro irmão”, EXPLICA Maria Lucia da Silva. Em um contraponto, Thais Barbosa Passos, alerta: “não devemos culpar os negros mais uma vez pelo racismo que sofrem. Evidente que devemos conhecer nossa história, mas a responsabilidade é de todos nós, seja branco, preto ou qualquer outra etnia”.

Foto: Julia Nagle

 

A mudança da estrutura vigente, com o racismo preponderante em todos os setores da sociedade brasileira, passa diretamente pelo diálogo. Nesse sentido, tanto a república Senzala, quanto a República Alforria, foram procuradas sem julgamentos prévios de valores, visando enriquecer a discussão. Entretanto, infelizmente, a Senzala nem sequer deu retorno, enquanto a Alforria preferiu não se envolver, afirmando que a república já se encerrou.

Cabe a nós uma reflexão, como em duas falas de personalidades negras que representam a luta contra o racismo, uma na comunicação, através do jornalismo, e outro na arte, por meio da música:

“Tem que mudar a mentalidade de que preto parado é suspeito e correndo é culpado”, Maju Coutinho no Jornal Hoje.