Amor para se distrair é antídoto na pandemia

Estudantes vivem relacionamentos afetivos, presenciais ou virtuais que não envolvem namoro em meio ao desamparo e solidão da pandemia; especialistas ressaltam que essas relações também podem evoluir para maiores compromissos

 

 

por Ramana Rech Duarte

Arte: Ramana Rech Duarte/Foto: Joel Gomes/Unsplash

 

“O nosso amor a gente inventa pra se distrair”, recitava Cazuza lá em 1987. E, em 2021, Helena Klink, estudante de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis, me diz que é “muito gostosinho” ter alguém de quem receber um denguinho no meio da confusão pandêmica sem sentimentos envolvidos. 

Os versos de Cazuza acima mencionados retratam com fidedignidade alguns moldes de relacionamentos que surgiram com a pandemia. Eles envolvem pessoas solteiras que buscam relacionamentos afetivos e levam em consideração alguns dos protocolos contra a contaminação pelo coronavírus. 

Esse chamado lockdengo, muitas vezes, assume a função de válvula de escape dos sentimentos de desamparo. Pode ser um estimulante antídoto contra os dias repetitivos desde março de 2020, momento em que as aulas presenciais na USP foram interrompidas e os alunos foram dispersados para suas casas. 

Thiago de Almeida, psicólogo especialista no tratamento de dificuldades do relacionamento amoroso, explica que as pessoas estão carentes dentro de suas próprias famílias e casas. As relações com parentes e amigos “não substituem o carinho de se sentir desejado e querido, porque os relacionamentos amorosos são uma das partes mais importantes da vida das pessoas”. 

Para Helena Klink, o lockdengo começou com um flerte despretensioso no Twitter. Os dois estavam buscando a mesma coisa, alguém para trocar carinhos sem namoro ou outros envolvimentos. Os dois começaram a se encontrar em janeiro e estabeleceram que ficariam apenas um com o outro para manter certa segurança em relação ao coronavírus. Eles passam principalmente fins de semanas juntos, quando também assistem filmes, cozinham juntos e conversam bastante. 

Sozinha em casa, o lockdengo se tornou para a estudante uma boa forma de interagir além do virtual  e aplacar a carência. Ao mesmo tempo, a convivência permitiu o desenvolvimento de bastante intimidade entre os dois, criando uma relação de amigos. “Sei que se ele chegasse aqui algum dia e a gente ficasse só a fim de fazer nada, de assistir filme, temos intimidade para fazer isso”, afirmou. 

Em outros casos, o lockdengo permaneceu no mundo virtual, trazendo novas configurações. Como explica Almeida, muitas vezes, esses casais esperam com ansiedade o momento em que poderão se ver fora das telas e conhecer as nuances do outro, gerando ansiedade em torno do encontro virtual. “Eles querem saber se as pessoas com que estão conversando são  reais e podem fazer parte mesmo da vida delas consolidando e estabelecendo um relacionamento amoroso nos ditames reais, presenciais”, afirmou.

Guilherme Salustiano, estudante de Engenharia da Computação da Poli, conversou durante meses com uma até então desconhecida pelo Tinder, popular aplicativo de relacionamento, e, com o avanço da vacinação, decidiram finalmente marcar um encontro presencial. A maioria dos planos continuou relegada para um futuro pós-pandêmico e com o retorno das aulas presenciais na USP. 

Por ter entrado na USP em 2020, Guilherme não teve muito tempo para formar vínculos com a Universidade e seus novos colegas, o que trouxe a solidão. Ele também nunca havia navegado pelo Tinder antes, até chegar a pandemia e começar a se sentir mal, porque “vi outras pessoas dando certo e eu estava travado no tempo”. 

Em junho, conheceu alguém pela plataforma de relacionamentos. Nos primeiros três dias trocavam mensagens por quatro, cinco horas a fio  durante as noites. Depois, a frequência das conversas foi diminuindo para uma vez por semana. Guilherme relata que isso tem sido uma forma de acabar com a monotonia e sentir outras coisas além do desamparo da pandemia, como o frio na barriga. 

O estudante sempre gostou muito de conhecer novas pessoas e o flerte no mundo virtual tem possibilitado que ele conheça  a visão de outra pessoa, o que o tira um pouco da mesmice da rotina pandêmica. 

Ainda assim, Guilherme não está satisfeito com o que o virtual pode proporcionar. “Quando você conversa com alguém via mensagem só vê o que a pessoa quer mostrar. Já no físico você olha para a cara dela e sabe como está”, afirmou.

Embora as relações digitais amenizem a solidão, ela não supre todas as necessidades humanas como no face a face, conforme esclarecimento de Ailton Amélio da Silva, professor  aposentado  do Instituto de Psicologia da USP especialista em relacionamentos amorosos. “O pessoalmente abre vários leques de relacionamento. Pode ter beijo, abraço, sexo, cozinhar junto, assistir filmes.”

De lockdengo para namoro

Há um consenso entre Amélio e Thiago de Almeida de que o lockdengo pode facilmente evoluir para um namoro, ainda que isso não seja uma regra. Muitas vezes, o tempo que as pessoas passam conversando no meio digital é suficiente para amadurecer o relacionamento e conhecer a pessoa para além dos toques e da química. 

Foi o que aconteceu com a estudante de Relações Públicas, Lohana Thereza da Costa, que conheceu seu namorado no grupo de organização do campeonato da USP, o Bife. Já a aluna de Relações Internacionais, Isadora Grossi, começou a namorar uma semana antes do dia dos namorados. Ambas relataram terem se apaixonado de forma rápida.

Já no segundo encontro presencial em um parque, Lohana começou a namorar o rapaz com quem estava conversando por mensagens há dois meses. Ela conta que os dois conversavam 24 horas por dia sobre tudo. “Eu não imaginava que a gente criaria tanta intimidade e as coisas iam acontecer tão rápido”, diz a estudante. 

A escolha de levar o lockdengo ao presencial foi motivada pela vontade de não deixar aquele relacionamento morrer. “Eu tinha muito medo de que as coisas dessem errado se a gente não se visse, porque o assunto ia acabar e a gente ia se enjoar, e eu perderia a coisa tão legal que estou vivendo agora.”

O professor Amélio ainda cita uma linha de pesquisa da psicologia, segundo a qual existe uma constância de intimidade que não deve ser ultrapassada para que a pessoa se sinta exposta. Não estar de frente para alguém permite avançar a intimidade em outras áreas. Por isso, pode ser que alguns casais compartilhem mais memórias e pensamentos do que fariam ao vivo.

No caso de Isadora Grossi, conversar com o seu então “contatinho” entre os meses de agosto de 2020 a fevereiro de 2021, ainda que não houvesse expectativa em se ver, tornou aquilo uma rotina difícil de desapegar. Os encontros presenciais vieram depois de forma “orgânica”, como ela mesma adjetivou e trouxeram ainda mais sentimentos. O pedido de namoro veio na primeira semana de junho.

“Eu acho que pelo fato de ter uma pessoa para trocar um carinho – porque meio que a pandemia nos tirou tudo – , peguei um sentimento por ele bem rápido, a gente começou a se gostar bastante”.