Franzam as sobrancelhas

Ilustração: Natalie Majolo
Ilustração: Natalie Majolo

Em uma reportagem recente do Jornal da USP, professores da Universidade questionaram a abordagem da história antiga pelos livros didáticos, por causa de sua desatualização. Segundo os pesquisadores, as editoras de livros didáticos dialogam pouco com as descobertas acadêmicas atuais. Por exemplo, a formulação da história da Antiguidade, no século XIX dá destaque a Atenas e Esparta e desconsidera a riqueza das outras 1200 cidades-estado da época. A desatualização é uma forma de distorção, por acomodação, e é prepotência parar de pesquisar por achar que a verdade absoluta foi atingida. O conhecimento não é um objetivo que se atinge, são informações que se acumulam, e, para aglomerá-las, deve-se apontar para as coisas do mundo, e perguntar, incessantemente, como uma criança chata.

Tenho memórias bem nítidas de perguntas quando era mais nova. Em uma aula de História do ensino fundamental, deparei-me com a palavra Constituição, toda pomposa com sua letra inicial em caixa alta, e perguntei ao professor o que era. Também lembro de estar folheando uma revista local de Ribeirão Preto, olhar uma coluna de opinião com a palavra “clichê” no título e perguntar o significado para o meu irmão. Sempre gostei da sensação de entender e armazenar a resposta de uma pergunta que fiz e, a cada movimento desse, me sinto maior. E também fico indignada como a descoberta nova fica aparecendo em todo lugar: depois que aprendi o que era Constituição e clichê, parecia que todo dia eu me deparava com essas palavras e questionava como eu consegui ignorá-las por anos.

Já mais crescida, escolhi cursar jornalismo e ingressei na universidade, um ambiente de dúvida, hipótese e debate, em sua essência. Sendo uma profissão movida pela pergunta, imagine o que é cursar jornalismo dentro de uma universidade, a dúvida sobre a dúvida. Quem vai ser o secretário de redação do JC? Qual vai ser a abordagem dessa pauta? Quem eu entrevisto? Essa ilustração fica boa no texto da editoria de cultura? Quantas pessoas vão acompanhar o fechamento do jornal? Só depois de conversas com questionamentos e re-questionamentos, mandamos o jornal para a gráfica.

Que se indigne por não saber. Se pesquisas acadêmicas dizem algo que muda o cenário do passado histórico, um material didático não pode se conformar em ter uma informação dissonante em relação à descoberta. Semanas atrás minha avó se revoltou porque estava por fora e nunca tinha ouvido falar da cantora de sertanejo Marília Mendonça: “Mas eu assisto TV o dia inteiro”, reclamou. Foi, de fato, uma frustração muito grande para ela.

Que mude de ideia. Como mostra a matéria do Jornal da USP, uma atualização no livro didático não retrataria o Império Romano como opressor dos “bárbaros” e levaria em conta as relações distintas que ele mantinha com as civilizações dominadas. Mas qual é o problema de mudar uma ideia, mesmo que ela tenho sido ensinada para várias gerações? No filme recém-lançado sobre Elis Regina, a cantora critica, durante anos, o uso da guitarra. Depois de um tempo, inspirada por um disco da Gal Costa, volta atrás: Elis lança álbum de sucesso com muita guitarra.

As editoras precisam questionar o conteúdo dos livros didáticos antes de mandarem para a gráfica, precisam estudar o que está aparecendo como novidade, e não só as editoras. É menos uma exigência, e mais uma recomendação, porque é interessante explorar e conhecer. E, juro, esse motivo basta. A cada estudo, deixamos de ser corpos vagando por aí e passamos a ter consciência de espaço e tempo, com cada vez mais questionamentos.  É possível sobreviver sem isso, mas me parece muito menos prazeroso.