Diante dos casos de violência de gênero dentro da Universidade de São Paulo, coletivos feministas, comissões estudantis e iniciativas da própria instituição buscam formas de garantir o combate ao problema
Só no começo deste mês, ao menos três casos de assédio na Cidade Universitária foram comunicados através das páginas dos coletivos feministas no Facebook. Em Ribeirão Preto, uma onda de boatos sobre um suposto estuprador em série levou a comunidade acadêmica ao pânico, obrigando a Prefeitura do Campus a lançar nota de esclarecimento e divulgar uma cartilha de orientações para pessoas que tenham sido vítimas ou presenciado cenas desse tipo de violência. No entanto, o aplicativo Campus USP, que facilita o contato com a Guarda Universitária e reporta ocorrências em tempo real através de texto, fotos e áudio, registrou apenas 1 ocorrência do tipo no campus Butantã e outra em Piracicaba durante todo o período de funcionamento do app, de setembro de 2016 até agora. Segundo o coordenador da Superintendência de Segurança e Proteção, José Antônio Visintin, este ano o número desses casos chega a zerar, pelo menos em denúncias formais.
Os dados oficiais da Universidade contrastam com os apresentados na pesquisa “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, realizada em fevereiro de 2017 pelo Instituto Datafolha, Instituto Avon e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, idealizada em conformidade com o lançamento do programa “Rede Brasil Mulher” da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM), que pretende reunir esforços de várias áreas para impulsionar ações de igualdade e de enfrentamento à violência. A cada hora, 503 brasileiras foram vítimas de agressão física em 2016, somando um total de 4,4 milhões no ano. Da população adulta acima de 16 anos, 66% dos brasileiros presenciaram uma mulher sendo agredida física ou verbalmente; 51% já viram uma mulher sendo abordada de forma desrespeitosa na rua. Para as jovens de 16 a 24 anos a situação é mais grave: 10,4% foram assediadas fisicamente em transporte público, enquanto 5% já foram agarradas ou beijadas sem seu consentimento.
No contexto universitário, a pesquisa aponta que cerca de 67% das alunas de instituições públicas ou privadas reconhecem ter sofrido algum tipo de violência de gênero; 56% sentiram-se assediadas e 28% relataram atos que constituem violência sexual. Tais casos têm consequências importantes para a saúde das vítimas como depressão, impulsos suicidas, DSTs, gravidez indesejada, aborto, além de aumentar as taxas de evasão escolar e prejudicar seu desempenho acadêmico. Contudo, a violência de gênero manifesta-se de diferentes formas além da agressão física, podendo ser de ordem psicológica, moral, sexual, patrimonial, étnica (em função da raça e\ou cor) e institucional.
Ocupação da SAS
Diferentemente do que se imagina, o processo de denúncia não finda a dor da vítima, que passa a estar exposta a um número sem fim de burocracias que dificultam a punição do agressor e acabam por reiterar a violência ao invés de mitigá-la. Essa afirmação tem base no relatório apresentado pela Comissão de Violência de Gênero no CRUSP, de 3 de maio deste ano. Segundo documentos fornecidos pela Superintendência de Assistência Social (SAS), entre 2009 e 2016 foram reportadas 17 ocorrências de gênero nas moradias estudantis, entre as quais apenas três foram objetos de apuração formal pela Universidade de São Paulo.
A Comissão ‒ resultante da mobilização que culminou na ocupação da sede da SAS, em abril de 2016, como forma de protesto à omissão institucional ‒ apurou, com base em depoimentos de vítimas, assistentes sociais e levantamento estatísticos, que a maioria dos episódios não é reportada ou formalmente registrada pela SAS, inclusive em casos de reincidência, quando o agressor já cometeu os crimes antes.
De acordo com o relatório “a não existência no regulamento interno do CRUSP de quaisquer critérios específicos para atender casos de violência de gênero, a ambiguidade por parte da Superintendência de Assistência Social nos processos de averiguação, acolhimento e responsabilização dos casos de violência e a não existência de um protocolo de atendimento para a denúncia de tais casos são alguns dos fatores que submetem e intensificam situações de violência”. Esses são os motivos pelos quais as moradoras não reconheciam o órgão como uma possibilidade de resolução dos conflitos que estavam vivendo, seja por já terem presenciado situações de inoperância dos profissionais envolvidos (guardas, porteiros ou assistentes sociais), seja por já terem sido desencorajadas por estes profissionais a prosseguir com a denúncia.
O relatório propõe mudanças em normas universitárias, especialmente do CRUSP (Regimento e Regulamentos), para que permitam a adoção de medidas de urgência de modo a neutralizar a situação de risco a que as mulheres ficam vulneráveis até a conclusão dos procedimentos de apuração e disciplinares. “A Lei nº 10.177/1998, cominada com a lógica das medidas protetivas da Maria da Penha, já oferece subsídio legal para que, internamente, a USP promova mecanismos de atuação cautelar que podem envolver a retirada imediata do denunciado do CRUSP ou a transferência provisória do servidor denunciado para garantir a permanência da denunciante na universidade e na moradia”.
Medidas de segurança
Desde o escândalo dos casos de estupro na Faculdade de Medicina (FMUSP) em 2014, que levou à chamada CPI do Trote, a Universidade tenta dissociar sua imagem como omissa às questões de gênero. Nesse sentido, foram implementadas medidas de segurança, como o aumento do policiamento nos campi e a criação dos núcleos de direitos humanos nas Unidades, a exemplo da Comissão de Direitos Humanos. O Escritório USP Mulheres também anunciou recentemente o compromisso firmado com a ONU Mulheres e sua adesão às campanhas Eles por Elas e Impacto 10x10x10, além da promoção de palestras e debates com estudiosas da causa feminista e a comunidade discente e docente.
Para o superintendente de Segurança e Proteção, mais do que medidas pontuais, é necessária uma mudança estrutural da forma de agir e pensar até o ponto de não mais acontecerem tais violências no âmbito acadêmico. “Nossa segurança é compartilhada entre a Guarda Universitária, a polícia comunitária e os usuários. Temos que nos ajudar”, conta.
O aplicativo Campus USP, uma das principais medidas protetivas adotadas, teve cerca de 13610 downloads para IOS e Android. Você se cadastra com seu número USP e já consegue usar app em qualquer um dos campi. Ele possui 12 tipos de categorias no registro de ocorrências (atividade suspeita, violência contra mulheres, furto ou roubo, emergência médica, entre outros) e também um sistema de alerta. Por exemplo: se você vai andar do CRUSP até a ECA, passando pela Praça do Relógio, ativa o sistema de alerta, coloca o tempo estimado de duração do trajeto e, durante aquele período, caso se sinta ameaçado, com uma chacoalhada no aparelho a G.U. é acionada.
Em situações de emergência, a polícia militar também é acionada para, nas palavras do superintendente, pegar os bandidos enquanto a Guarda Universitária socorre às vítimas. Quando questionado se esses profissionais possuem treinamento para atender vítimas de violência de gênero, Visintin responde: “Sim, todos nós da Segurança, inclusive eu, passamos por treinamentos com o SAMU e o USP Mulheres para proceder com esses casos”.
Segundo o superintendente de segurança, o protocolo de atendimento varia de caso a caso, mas o principal é ouvir a vítima e encaminhar para os serviços competentes, tanto quanto ao Hospital Universitário ou serviço de psicologia nos casos de violência física. A vítima pode formalizar sua denúncia entrando em contato com a diretoria Faculdade ou as Comissões de Direitos Humanos de cada unidade, indicando testemunha. Pode também denunciar paralelamente à ouvidoria , que tem o papel de pressionar para que a direção da faculdade apure os casos, ou informar o USP Mulheres a respeito da denúncia. Terceiros também podem denunciar, mas precisam do consentimento dela.
Quando o agressor tem vínculo com a USP, é instaurada sindicância ou Processo Administrativo Disciplinar. Também é recomendado fazer Boletim de Ocorrência pelas Delegacias da Mulher, o que leva a um inquérito policial independente dos processos internos da Universidade. Se o acusado for aluno, as penas são de advertência verbal, repreensão por escrito, suspensão e expulsão, ficando a critério das comissões sindicantes. Se for servidor ou professor, as penas variam de advertência e repreensão a suspensão ou demissão. O tempo de tramitação dos processos e sindicâncias, porém, é diverso e pode demorar mais ou menos de acordo com os prazos estabelecidos.
Apesar dos recursos disponibilizados, o envolvimento da instituição na resolução de conflitos de gênero ainda é considerada negligente pelos Coletivos Feministas, que têm desempenhado um papel importante na cobrança de responsabilização para os casos que continuam acontecendo.
Ação dos coletivos feministas
Isabela Gualtieri, estudante do curso de Relações Internacionais e membro do Núcleo Feminista do Instituto de Relações Internacionais (IRI), foi uma das idealizadoras da pesquisa sobre a percepção sobre violência de gênero no curso, realizada em outubro de 2015, em que 69 das 150 alunas matriculadas responderam às questões. Como resultado, 75% disseram já ter sofrido machismo, 63% viveram situações de assédio e 37% viveram um relacionamento abusivo com alunos da unidade; também foram expostas na página do Núcleo denúncias anônimas de tentativas de estupro na vivência. A repercussão foi grande e, diante disso, foi feita uma audiência pública em conjunto com os dirigentes da unidade e comissão de sindicância, da qual derivou um relatório com propostas de segurança como campanha institucional por meio de cartazes, folders e vídeos, a participação ativa da unidade na promoção de debates e inclusão da produção acadêmica relativa aos estudos de gênero nos programas das disciplinas, assim como a criação de disciplinas eletivas.
O resultado direto dessas mobilizações ainda está sendo sentido aos poucos. Representantes do USP Mulheres informaram ao JC que já estão sendo estudadas as propostas de criação de Comissão Processante Permanente para a condução dos procedimentos formais apuratórios e disciplinares, espelhada na iniciativa do campus de Ribeirão Preto, a Comissão de Apuração de Casos de Violência (CAV Mulheres). Estuda-se também a criação do Centro de Referência destinado ao acolhimento e ao acompanhamento desses casos, de modo a criar uma rede especializada de apoio à vítima.
Das ações imediatas promovidas pela órgão está também o Curso de Autodefesa para Mulheres em parceria com o CEPEUSP e ministrado pelo professor e lutador de jiu-jítsu Andrei Delgado, que ensinará técnicas de reconhecimento de situação de perigo, como se desvencilhar de abordagens abusivas e se defender de golpes traumáticos. Às aulas acontecem às terças e quintas das 11h às 12h, sendo necessária inscrição prévia. Para mais informações, acesse: http://sites.usp.br/uspmulheres/.