Perfil: Antonio Candido

Mineiro nascido no Rio de Janeiro, elegante e inteiramente socialista

Os que o conheciam, têm a lembrança de um elegante otimista. Em uma palestra na Faculdade de Educação, já anos depois de sua aposentadoria, Bárbara Heller, na época aluna da Escola de Comunicações e Artes, relembra a sala lotada. Por ser um professor emérito da USP, a quantidade de ouvintes não era de se estranhar. O que lhe causou espanto foi a forma como lidou com a mãe, que acompanhada do filho pequeno, ia se retirando da sala quando o menino começou a chorar. “Peço que fiquem. Os lugares ficam muito melhores com a presença de crianças”, disse o professor.

No dia 12 de maio, no entanto, a FFLCH, a escola que lhe rendeu anos de produção acadêmica, amigos, além de uma esposa com quem teve três filhas, amanheceu com as aulas suspensas em respeito à sua recente memória. O adeus a Antonio Candido havia começado.

O aposentado professor titular em Teoria Literária nasceu no Rio de Janeiro, mas se considerava mineiro. Teve de escolher um curso que fizesse jus à carreira de médico do pai, por isso iniciou o curso de Direito no Largo São Francisco, que largou no quinto ano para depois se formar em Ciências Sociais e Filosofia, em 1942. Dois anos mais tarde, já era professor na Universidade.

Embora cientista social, a especialização em literatura brasileira o fez fundar o Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada do curso de Letras, onde lecionou por grande parte da vida acadêmica e lançou obras como Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, que para o professor de Introdução aos Estudos Literários , do mesmo departamento de Candido, Edu Teruke Otsuka, é uma das mais importantes.

Com Lula em 1994, durante o lançamento de um livro. (Foto: Arquivo pessoal)

Mesmo sendo crítico literário, Camilo Vanucchi, na época estudante de jornalismo, conta que Candido pedia desculpas ao analisar os poemas produzidos pelo estudante por poesia não ser sua especialidade. Recebeu do crítico o convite para ir à sua casa: tinha lhe enviado uma exagerada coleção de poemas e queria saber a opinião do professor. Algo em torno de cem ou duzentos. “Selecionei alguns”, disse o professor. “Os que têm uma cruzinha desenhada a lápis no canto da folha são bons. Os que têm duas cruzinhas são muito bons. Tente se concentrar neles e aprender com eles.”

“Com a generosidade de um frade, me deixou, ou tentou me deixar à vontade”, conta Vanucchi. A meia hora de conversa entre eles deixou marcas na memória do jornalista. “Escrever é editar. Escrever é cortar. Quando você tiver acabado de escrever o poema, é justamente aí que seu trabalho terá começado”, lhe ensinou o professor.

Entrega do Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano, em 1966. (Foto: Arquivo pessoal)

Em sua escrita, Antonio Candido também tinha objetivos claros: poder ser entendido e trazer a discussão os problemas da cultura brasileira de forma que, mesmo dentro da literatura, a brasilidade fosse defendida. Para Edu Teruki Otsuka, a diferença do crítico literário dos demais, não se tratava somente de ver coisas que os outros não viam, mas trabalhava a necessidade de colocar dentro de sua análise da cultura a imagem do povo, do pobre e daqueles que estavam “à margem do sistema econômico brasileiro”. A figura do pobre era importante, pois se tratava do Brasil. Teruki conta que pensamento que estruturava suas análises, era enxergar a massa popular não como um simples assunto dos textos literários brasileiros, mas como “um fator determinante para o modo como a obra se estrutura formalmente”. Do externo para o interno, como o próprio Candido caracterizou sua visão em uma recente entrevista ao Brasil de Fato.

Antonio Candido na FLIP, em 2011. (Foto: André Gomes de Melo)

O olhar para os pobres tinha raiz específica. “Sou inteiramente socialista”, ele já declarou. “Suas visões socialistas certamente estão presentes na forma como ele lidou com a literatura na medida em que ele tem consciência de que todo o processo de construção da cultura brasileira, foi um processo que esteve durante muito tempo restrito às elite”, afirma Teruki.

Para Candido, a literatura havia de ser acessível às camadas populares principalmente por carregar em si processos de humanização. “Ele coloca a literatura como forma algo que vai ser decisivo para que as pessoas possam desenvolver-se, nesse sentido de formação plena dos sujeitos”. Considerava uma necessidade apresentar as ideias com clareza, para que a informação deixasse de ser um privilégio e passasse a ser um bem comum.

Não se dizia marxista e defendia o ideal socialista com unhas e dentes. Para ele, se trata de uma doutrina triunfante em todo o mundo, apesar de uma “finalidade sem fim”. Já contou que apesar de o mundo nunca conseguir alcançar o paraíso prometido pelo socialismo, seria necessário agir acreditando que se chegaria lá, pois do contrário, “você cai no inferno”.

Com sua esposa, Gilda de Moraes Rocha. (Foto: Arquivo pessoal)

Do celeiro de ouro dos intelectuais brasileiros, Antonio Candido começou sua politização por influência do crítico de cinema e historiador Paulo Emílio Sales Gomes, que tinha o bordão que era melhor ser fascista do que não ter ideologia. Para o cineasta, cada geração tinha o seu dever e a deles tinha o dever político. Junto com Paulo Emílio, Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado, Ruy Coelho e sua futura esposa Gilda de Moraes Rocha, estreou como crítico literário da Revista Clima, em que colocava em prático o mote de combate de todas as formas do pensamento reacionário.

Assim, Antonio Candido nunca fugiu da militância. Lutou contra o Estado Novo de Getúlio Vargas ao lado da Frente de Resistência e depois, participou do Grupo Radical de Ação Popular. Ao fim daquela ditadura, integrou a Esquerda Democrática, que se transformou no Partido Socialista Brasileiro, pelo qual foi candidato derrotado: teve pouco mais de quinhentos votos. Fundou o Partido dos Trabalhadores em 1980, ao lado de Lula. Mas é já no fim da vida que declarou ter “temperamento conservador, atitudes liberais e ideias socialistas”.

Do diálogo com a formação política, acadêmica, do otimismo de sua suave ferocidade, carregava ainda a fala de que o socialismo humanizou o mundo e que nem mesmo o capitalismo escapou. “O que se pensa que é a face humana do capitalismo, é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue.” Daí, talvez, a necessidade de dividir a ação.

Com João Cabral de Melo Neto, em 1994. (Foto: Arquivo pessoal)

Perto da época de grandes manifestações populares, em plena ditadura militar, no ano de fundação do Partido dos Trabalhadores, Candido trouxe em sua obra Teresina expressões cunhadas pelos bolchevistas e apropriadas às grandes convulsões sociais da década XX, os revolucionários profissionais e os radicais de ocasião.

O mestre colocou os revolucionários profissionais como aqueles inteiramente entregues à atividade política, sustentados por organizações partidárias com uma “obediência sem reservas, todo o seu pensamento e sua ação, não devendo, como um clérigo, ter outro compromisso”. Por outro lado, disse ser interessante o tipo oposto. Aquele sem compromisso com a revolução, sem devoção, que vez ou outra é contra ela, mas que em algum momento da vida agiu em seu favor: “uma palavra, um ato, um artigo, uma contribuição, uma assinatura, o auxílio a um perseguido”.

Candido coloca em xeque duas forças que poderiam ser atribuídas a si. Do revolucionário da juventude, o militante socialista que lutou contra as ditaduras do Estado Novo, a militar, além de mostrar força política e intelectual para auxiliar no crescimento cultural do país. De outro, o radical ocasional, representado pelo senhor em tenra idade, reservado, que diz ter atitudes liberais apesar das ideias socialistas, mas que, como ele mesmo afirmou “se fosse possível computar esses fatos ocasionais, essas atividades temporárias, talvez resultasse um total imenso de forças”.

E resultou.