Por Gabriel Bussolotti Silveira
Pensei em iniciar o texto de diversas maneiras. Através de uma passagem do Machado de Assis em que ele ensina como introduzir uma crônica. Recorrendo a um trecho escrito por Rubem Braga no qual o autor fala sobre seu ideal de escrever. Ou contando um pouco da história desse gênero literário-jornalístico tão brasileiro. Porém, nada mais crônica do que revelar minha indecisão e começar assim a última página do JC 541.
Esse texto de natureza curta está presente em nossos jornais e livros há pelo menos 150 anos. Isso se deve, é claro, a autores como Luís Fernando Veríssimo, Clarice Lispector e Fernando Sabino – além daqueles já citados aqui –, que contribuíram brilhantemente para a construção do gênero. Ao lado de assassinatos e roubos em páginas de grandes veículos, suas produções ofereciam um resquício de humanidade aos leitores.
A crônica é um emaranhado entre a literatura e o jornalismo, entre o cotidiano e o íntimo, o banal e o profundo, o ser brasileiro e a universalidade do homem. E acho que é isso que a torna tão cativante. Ela nunca ambicionou ser um romance. Às vezes, se vê próxima do conto. Mantém alguma distância dos textos vizinhos em jornais. A crônica é um gênero puro, terreno e nosso.
Diferentemente do que pensava, esse espaço em que escrevo existe há pouco tempo no Jornal do Campus. Textos do gênero só começaram a ser publicados em 2015, 32 anos depois de sua criação. É curioso e – por que não – revoltante pensar que um jornal feito por estudantes não teve uma sessão dedicada à crônica por mais de três décadas.
Até 2015, a editoria de opinião continha somente entrevistas, debates e ombudsman. Ou seja, nenhuma das posições, crenças e pareceres publicados provinha de quem escrevia e produzia o Jornal. Após uma reforma editorial, a última página passou a integrar crônicas, formato que permanece até hoje.
Em um movimento de reviver a história desse gênero no JC, me deparei com produções representativas não somente de seus autores, mas também do próprio Jornal. Fica a impressão, ao ler as crônicas, que os alunos responsáveis por esse projeto demandavam há muito tempo uma estrutura como essa. A via de elaboração das reportagens não era o suficiente para tratar de tópicos relevantes que atingiam às suas vidas pessoais. Esse novo espaço, portanto, se mostrou fundamental desde o início.
É muito sintomático o primeiro texto do gênero publicado (JC 436) ser uma confissão jornalística de como lidar e responder às crises. No momento em que ele foi escrito, como diz a autora, o mundo se encontrava em caos: “crise hídrica, escândalos políticos, instabilidade econômica, ebola”. Apesar disso, a crônica permite que um tom empático prepondere. Por meio de uma narração otimista, a autora insiste que não devemos nos entregar. O leitor que enfrenta a crise deve ser propositivo e, somente assim, iremos superar e extrair algo benéfico dessa situação.
Mas, para além de temas que promovem reflexões, muitos textos narram apenas banalidades do cotidiano. A edição 444, por exemplo, contém um divertido desabafo de um cético ferrenho convivendo com um mundo esotérico, muitas vezes, apreciado na Universidade. Já no JC 454, a temática da crônica é quase existencial. O autor, ao esperar uma entrevista que nunca aconteceria por estar no local um dia antes da data combinada, discute sobre a liberdade e a democracia.
As crônicas são muitas vezes recortes de nossa vida, o que permite ao leitor entender diferentes realidades. Os relatos mais intrigantes, às vezes, tratam de assuntos completamente diversos. Desde a narrativa de uma autora que, por pressa, escorrega e cai de cara na lama em frente ao bandejão (JC 495). Até a história de descontentamento da irmã ao receber um buquê de flores plastificadas de dia dos namorados (JC 506).
É possível entender um pouco desse gênero simples, mas também tão penetrante no texto do JC 490. Ele inicia assim: “Um professor meu disse que é incabível tentar escrever uma crônica se você nunca leu uma de Rubem Braga, Machado de Assis e Luis Fernando Veríssimo.” O autor diz que ouviu essa frase logo depois de se candidatar ao ofício de cronista da edição. Então, completa: “E você acha que eu já li algum deles? Pois é.” Percebendo que não tinha mais volta, ele começa a refletir sobre a sua capacidade de produzir um texto do gênero e a exigência excessiva por parte da universidade. No meio de toda essa divagação, o cronista se vê no fim da página. Ao contrário do que seu professor havia dito, ele percebeu que não era fundamental ter referências de grandes escritores.
A crônica não convence por sua complexidade. Ela te toca através da descrição de dois idosos alheios ao nosso mundo apressado (JC 480). Esse gênero não conquista por sua erudição. Ele nos encanta por meio de um relato íntimo sobre uma mãe e sua relação com a educação (JC 464). Antonio Candido diz, em um de seus estudos, que a crônica “na sua despretensão humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado”. E é exatamente essa modéstia que nos permite enxergar a beleza no cachorro Chico do IB (JC 536) ou no jantar de natal do CRUSP (JC 538).
Se eu tivesse espaço, ficaria enaltecendo muitas outras crônicas publicadas. Os exemplos não acabam. Como o texto do JC 458: uma reflexão angustiante sobre o caso de estupro de uma mulher por mais de trinta homens. Ou a produção do JC 533, que escancara as habitações precárias oferecidas ao redor da Universidade. Assim como a crônica lírica encantadora da edição 497. Mas, infelizmente, tenho que concluir esse texto.Os grandes jornais, cada vez mais, estão priorizando colunas e artigos de opinião em vez de crônicas. Esses textos são essenciais para a democracia, porém atuam de maneira diferente sobre os leitores. Colunas e artigos informam, evidenciam pontos de vista e contextualizam nossa realidade. A crônica, por outro lado, nos desvirtualiza do dia a dia, o que permite repararmos nas coisas que geralmente passam despercebidas. E, nessa ruptura do olhar, de certo modo, conseguimos nos reencontrar e recuperar nossa individualidade. Em um mundo no qual rotinas monótonas e passivas preponderam, a crônica se tornou um artifício elucidativo essencial para nós. Portanto, esse gênero literário-jornalístico, é indispensável não apenas para o Jornal do Campus, mas para a nossa sociedade. Exaltemos, então, esse espaço e vida longa às crônicas!