Rafael Borguin e Letícia Chagas, em depoimento a Sophia Vieira*

Saindo da estação Butantã do metrô, não foi preciso andar muito para chegar ao final da fila do circular – seu tamanho a fazia se estender até a entrada da estação. Ao encarar a quantidade de pessoas na minha frente, já imaginava que essa seria mais uma das manhãs em que uma viagem do metrô até a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia levaria pelo menos 1 hora. Verifiquei o celular mais uma vez para ter certeza do horário, mas o que prendeu os meus olhos foi a data marcada na tela: 17 de março de 2025.
Com um calafrio percorrendo o corpo, as lembranças de 5 anos atrás invadiram a memória imediatamente. No dia 17 de março de 2020, a notícia da suspensão das aulas presenciais na USP, em decorrência do vírus COVID-19, chegou. Na época, não demorou muito para a Universidade se esvaziar e a rotina de todos se tornar o que achávamos que seria um curto período em casa. Mas não foi.
– E ai, Rafa! Tudo bem? – fui retirado dos pensamentos por uma voz alta e animada, que vinha acompanhada de um sorriso simpático e se colocou logo atrás de mim na fila.
Ali se encontrava Letícia, uma menina alta, com cachos volumosos que emolduravam seu rosto. Hoje, seus olhos eram marcados por um pequeno e quadrado par de óculos, que lhe davam um ar de maturidade muito diferente do dia que a conheci, há 7 anos. A cumprimentei de volta com um abraço.
– Oi, Lê! Indo pra Cidade Universitária essas horas?
– Sim, agora eu faço mestrado aqui na USP. É na SanFran, mas algumas disciplinas eu peguei na FFLCH. E você? Como anda a vet? — Sua pergunta veio durante nossa caminhada a um ponto mais próximo da entrada do ônibus na fila. Uma leva de estudantes lotou um ônibus, que logo partiu rumo à USP. Não conseguimos embarcar.
Normalmente aquela poderia ser uma pergunta básica, parte de uma conversa simples em um ponto de ônibus, mas naquele dia 17, me levou de volta às reflexões sobre 5 anos atrás. Há 20 anos, faço parte do que chamamos de “comunidade USP”. Desses, os últimos 12 anos têm sido como funcionário da biblioteca da FMVZ.
– Olha, o lugar onde eu trabalho em especial, assim como nos últimos anos, está bem tranquilo. — o comentário tentava trazer um bom humor a uma situação preocupante: o esvaziamento de alguns espaços da universidade.
Entre todos os impactos que a pandemia teve na sociedade, esse era um dos mais evidentes no cotidiano: a mudança nas formas de socialização. A biblioteca, que outrora fora um espaço de convivência e estudos em grupo, havia se tornado um ponto para reuniões online. Se em tempos passados todos os dias eu buscava, enviava e reservava artigos acadêmicos para estudantes utilizarem em suas pesquisas, hoje os pedidos são raros, e trazem inclusive um sentimento de felicidade quando acontecem.
– A galera não se adaptou muito bem a essas estruturas do ensino presencial depois que a gente voltou, né? Esquisito…
– Elas se adaptaram aos formatos digitais, e a cultura de buscar mídias físicas, ou de fazer reuniões presenciais, foi diminuindo. A galera aprendeu a achar material acadêmico na internet com mais facilidade também, o que me preocupa um pouco. Às vezes, o Google não oferece os artigos mais confiáveis…— essa era uma preocupação que tomava parte dos meus momentos de reflexão no trabalho. Mas, naquele momento, a ideia fixa perdia espaço para uma preocupação mais imediata: se conseguiria entrar no circular que estava chegando ao ponto.
– Nossa, eu nunca tinha pensado nisso, deve comprometer a qualidade dos estudos de alguma forma, né? Mas essa questão das pessoas se encontrarem menos e irem a menos atividades presenciais me deixa bem pensativa. Acho que também tem a ver com a mudança do perfil de quem está aqui.
Letícia fez parte da primeira turma com cotas raciais a entrar na USP, em 2018. Se formou na Faculdade de Direito, e desde sua chegada ela parece virar do avesso cada lugar por onde passa. No seu segundo ano de estudos, se tornou a primeira mulher negra a presidir o Centro Acadêmico XI de Agosto, uma entidade estudantil pela qual passaram nomes como Michel Temer ou Jânio Quadros. Fez parte de mobilizações pela reforma da Casa do Estudante, pelo aumento dos auxílios estudantis e hoje, pelas redes sociais, busca incentivar a juventude periférica a se politizar e a entrar também na universidade.
– Se o auxílio não dá pra muita coisa, e a galera precisa trabalhar o dia inteiro e estudar cansado a noite, fica difícil aproveitar a universidade…– sua voz era baixa enquanto comentava a grande questão que perturba entidades, sindicatos e até a própria administração da USP: como voltar a reunir as pessoas? Um suspiro pesado acompanhou nossa entrada no circular, e a atração principal de todas as manhãs: os calouros atrapalhados que nunca andaram de ônibus.
– Realmente, parece que a demarcação temporal da pandemia também demarca uma maior diversificação da universidade. Quando eu estudei na FEA, em 2012, só tinha 2 estudantes da escola pública além de mim na minha turma. Acompanhei a luta por cotas raciais já como funcionário, em 2016, e hoje a diferença é grande mesmo.
— Apesar dessa galera que nunca andou de ônibus, a USP está menos branca, menos elitizada depois desses anos… Vejo mais gente preta agora, quando venho pras aulas do mestrado.
Demorou um pouco, mas conseguimos nos espremer no corredor do circular.
– O clima mudou entre os funcionários também… todo mundo voltou um pouco mais triste, mais distante… todo mundo perdeu alguém importante na pandemia, alguns faleceram também. O corpo de funcionários tinha muitas pessoas mais velhas, estávamos há um tempo sem concursos, então grande parte estava no grupo de risco. E a gente viu parte dos nossos colegas de trabalho sendo linha de frente, principalmente os funcionários do Hospital Universitário. No instituto de veterinária também, o laboratório foi utilizado para fazer testes de Covid.
Meu pensamento foi concluído com a Letícia levando uma mochilada, alguém ainda não havia adquirido a etiqueta do transporte público. Ela revirou os olhos e encarou o menino de fones descendo sem ao menos pedir desculpas.
— É verdade, amigo. Parece que faz tempo, mas acho que a gente ainda está lidando com esse trauma…
* O texto utiliza a ambientação ficcional no transporte público para ilustrar uma conversa real mediada pela repórter.
*Com edição Sop