Assédio moral: “a USP age como se esse problema não existisse”

Para Sintusp, as medidas adotadas pela Universidade para lidar com condutas abusivas são ineficazes; reitoria cita SUA como canal de acolhimento e de resolução para as denúncias

Foto: Pedro Malta/ Jornal do Campus

Por Bernardo Carabolante, Leonardo Carmo e Tainá Rodrigues*

Liz*, mulher trans e funcionária na Universidade há cerca de 12 anos, conta que, após ir a um bar com um ex-colega de trabalho, foi dormir em um colchão em sua casa. “Chegando lá, ele foi tomar banho e eu dormi. Ele saiu do banheiro, fez barulho e eu acordei. Ele tirou a toalha e estava excitado. Bateu [o órgão genital] no meu ombro e falou: ‘chupa’”, disse. Com medo de que gritasse, ele parou, e ela dormiu.  “Eu acordei no dia seguinte, com ele em cima de mim, tentando me beijar, mas eu consegui sair debaixo dele”, afirma Liz. 

Ela comunicou seus superiores do ocorrido, mas nada foi feito. Posteriormente, seu ex-colega virou seu chefe e, assim, a importunação sexual foi somada ao assédio moral. “Toda vez que eu me atrasava, ele mandava mensagem no WhatsApp perguntando onde eu estava. Durante esses atrasos, ele comentava com uma colega: ‘aquela vagabunda deve estar dando por aí’”. 

Ao chorar no trabalho, seu chefe questionou o motivo da tristeza. Liz então relatou que estava sofrendo com os olhares que recebia durante sua transição de gênero e recebeu a resposta: “Isso foi uma escolha, agora aguenta”. 

Depois, começou a ter suas funções reduzidas. “Mas acho que era essa a intenção dele, demonstrar para os professores que eu não fazia nada”, disse. O caso, enfim, chegou ao conhecimento da direção da unidade, que tomou providências. Liz foi realocada para outro setor e o ex-chefe perdeu o posto que ocupava. 

Dados obtidos pelo Jornal do Campus por meio de um pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que, de 2012 até 2024, a Ouvidoria Geral da USP recebeu 100 denúncias de assédio moral por parte de seus funcionários. 

Contudo, os números são maiores porque esse não é o único órgão que recebe denúncias do gênero  – a maioria é conhecida e apurada no âmbito das próprias unidades. Além disso, os abusos são em quantidade muito maior porque boa parte das vítimas nunca chega a realizar uma denúncia formal. É o caso de Liz.  

De acordo com Paulo César Rodrigues, mestre em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB), situações como essa têm se tornado cada vez mais comuns no Brasil e “os efeitos são devastadores para as vítimas”. O psicólogo afirmou que o assédio moral pode gerar depressão, ansiedade, fobia e chegar a motivar suicídios.

De forma geral, quem está sofrendo violências no trabalho só busca ajuda após um longo período. Mas funcionários que atuam no setor público, como os da USP, costumam postergar ainda mais esse processo, segundo o especialista. “Esses sujeitos sofrem por muitos anos e começam a entrar em um processo de quase apagamento dentro do ambiente de trabalho”.

Rodrigues afirma que espaços onde a competitividade é incentivada costumam ser mais propícios para condutas abusivas. “O assédio não é um acidente, mas uma ferramenta de controle”.

Medidas ineficientes 

O Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) propõe que a reitoria assine um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para se comprometer a combater o assédio moral dentro de suas instalações. Mas, até o momento, a Universidade segue na contramão de outras instituições estaduais como a Unicamp, que firmou essa espécie de acordo junto ao Ministério Público do Trabalho em 2015.

A USP age como se esse problema não existisse. Aí, a gente vê o nível de adoecimento dos trabalhadores. São muitos casos de burnout, ansiedade e depressão.

Patrícia Galvão, diretora do Sintusp

Segundo ela, uma das principais medidas adotadas pela USP para lidar com condutas abusivas – a criação da Comissão Permanente de Relações do Trabalho (Copert), também em 2015 – segue ineficiente e inacessível. “O reitor [Carlos Gilberto Carlotti Junior] limitou o escopo de atuação da Copert. Não respondem nossos comunicados e pedidos de reunião”, disse.

Questionada, a reitoria da USP afirma que a questão do assédio moral ganhou centralidade na Universidade a partir da criação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), em 2022. Uma das ações mencionadas é a implementação do Sistema USP de Acolhimento (SUA), um canal de denúncias central que foi disponibilizado este ano. 

A proposta do SUA, de acordo com o que foi informado, é garantir um “acolhimento respeitoso e qualificado à pessoa denunciante”, além de conduzir os “procedimentos administrativos necessários para uma resposta célere e justa”. A PRIP não retornou as tentativas de contato até a publicação dessa matéria.

*Nome fictício para proteger a identidade da vítima

*Editado por Giovanna Castro