Bandejão é banquete para os saguis e atrapalha pesquisas

Cientistas buscam formas menos invasivas de coletar amostras, mas a alimentação inadequada dos animais dificulta o processo

Arte: Giovanna Bergamaschi

Texto por Filipe Moraes e Júlio Silva*

Para atrair animais para uma pesquisa, uma equipe do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) desenvolveu um dispositivo capaz de coletar amostras de saliva de animais silvestres sem a necessidade de captura. A estratégia é liberar um aroma que lembra a comida dos primatas. Mas os saguis que circulam pelo campus não deram muita bola: eles preferem a comida oferecida por frequentadores dos restaurantes universitários.

O método utiliza o S.W.A.B. (Spontaneous Wildlife Autonomous Biosampler), um dispositivo que atrai os animais por meio de um odor artificial. Ao lambê-lo, eles deixam amostras de saliva, que são coletadas e analisadas para identificar zoonoses — doenças infecciosas transmitidas entre animais e humanos.

“O método convencional de coleta de amostras, que engloba a captura ou outros procedimentos invasivos, pode acarretar problemas de aumento do estresse, lesões e machucados. Pensando nisso, o projeto busca promover o monitoramento de patógenos de modo que a saliva seja ‘doada’ pelo próprio animal, evitando esse tipo de problema”, explica Aspen Gonçalves, bolsista PUB e integrante da pesquisa sobre o desenvolvimento de ferramentas não-invasivas para o monitoramento da saúde de animais selvagens.

No entanto, a pesquisa enfrenta desafios, a exemplo do comportamento alterado dos animais devido à alimentação inadequada proporcionada por humanos. “Os animais do bandejão, onde fizemos as coletas, estão muito acostumados a receber comida de humanos, o que faz com que eles não se interessem tanto pelo dispositivo e estejam sempre atentos às pessoas que passam ao redor”, explica Melissa Fernandes, também bolsista PUB e integrante do projeto. Essa situação, segundo a pesquisadora, está diretamente relacionada à interação excessiva entre humanos e animais silvestres, algo que pode comprometer o comportamento e a saúde dos animais.

Aspen reforça a importância do projeto ao lembrar que muitas doenças com potencial pandêmico têm origem zoonótica: “Nos últimos anos, tivemos a pandemia de COVID-19, originada no contato humano com morcegos. O HIV também surgiu, possivelmente, do consumo de carne de primatas, e a raiva é um vírus amplamente disseminado por interação entre humanos e animais”.

A alimentação inadequada, como oferecer pão, biscoitos e outras comidas processadas, impacta negativamente a dieta e fisiologia dos saguis. De acordo com Patrícia Izar, professora do Instituto de Psicologia (IP) e vice-presidente para Educação da Sociedade Internacional de Primatologia, essa interação com os animais apresenta também um grave risco de disseminação de doenças. O vírus do herpes comum, por exemplo, é muito comum em humanos e causa apenas feridas leves. Contudo, quando um humano infectado tem contato com um sagui, o vírus pode causar feridas internas graves e levar os animais ao óbito.

Sagui flagrado comendo pão em frente ao Bandeijão da Química
Vídeo: Otávio Ferreira (aluno de engenharia elétrica)

Segundo Patrícia, esse é um problema de mão dupla, já que alguns saguis podem ser reservatórios de um tipo de vírus de raiva específico e podem transmiti-lo aos humanos através de mordidas. Um caso recente ocorreu em janeiro de 2025, na cidade pernambucana de Santa Maria do Cambucá, quando uma mulher de 56 anos faleceu após contrair raiva decorrente de uma mordida de sagui.

Interação com saguis

A professora Maristela Camargo, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), afirma que o hábito de alimentar os saguis no câmpus atrapalha as amostragens que seus alunos precisam realizar nas pesquisas. Por diversas vezes os pesquisadores estiveram presencialmente nos restaurantes tentando alertar funcionários e alunos sobre os malefícios dessa prática.

Para realizar as amostragens, nós utilizamos, por exemplo, um leve aroma de banana para atrair os animais. Mas eles acabam nem aparecendo, porque ao invés de ficar apenas sentindo o cheiro preferem ir nos restaurantes comer a banana que oferecem

Maristela Camargo professora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB)

Diante da facilidade de obter alimentos, os saguis ao redor do campus começaram a mostrar sinais de adaptação aos horários humanos. Maristela explica que eles se acostumaram aos horários de funcionamento dos restaurantes universitários e frequentemente aparecem no momento exato em que estão servindo as refeições.

No convívio natural, os saguis passam grande parte de seu tempo coletando e se alimentando de frutos, seiva de árvores e pequenos insetos. Uma vez que não precisam mais caçar, os primatas passam a se reproduzir em maior número e gerar um aumento na população. Além disso, a falta de atividade predatória dos saguis provoca um aumento na proliferação dos insetos que seriam suas presas e, por fim, agravam os processos de desequilíbrio da cadeia alimentar nos ecossistemas ao redor da Universidade.

Afeto prejudicial

Sérgio Lima, 49, é aluno do Instituto de Geociências (IGc) e relatou ao JC que frequentemente observa alunos interagindo e dando frutas aos saguis nas saídas dos restaurantes universitários, principalmente no Bandejão Central. Apesar de nunca ter tido a prática de alimentar os animais, ele afirma que desconhecia os prejuízos que esse hábito causa. “Eu sempre vejo as pessoas dando mamão, banana e maçã para os saguis. Não imaginei que fazia mal a eles, porque sempre pensei que esses animais gostassem muito de frutas”, diz Sérgio

Conforme Patrícia Izar, as pessoas que costumam alimentar os saguis o fazem pelo afeto aos animais e por acharem que estão ajudando. O resultado, no entanto, é exatamente o oposto, já que muitas das frutas servidas nos restaurantes não fazem parte da dieta dos primatas e podem causar um aumento calórico significativo em seus organismos, além de outras alterações metabólicas.

Segundo a docente, ao se deparar com um sagui próximo aos restaurantes, o ideal é não oferecer comida. A atitude mais correta é espantá-lo com palmas e gritos e nunca usar violência.“A coexistência entre humanos e animais silvestres não significa viver juntos ou interagir constantemente, mas respeitar o espaço e o ecossistema onde vivem cada espécie”, afirma Patrícia.

Coexistir não significa viver junto, mas respeitar o espaço e o ecossistema da outra espécie

Patrícia Lazar professora do Instituto de Psicologia (IP) e vice-presidente para Educação da Sociedade Internacional de Primatologia

Ambas as professoras convergem ao destacar a importância de conscientizar a comunidade universitária acerca dos riscos que o hábito de alimentar os animais do campus pode causar. Maristela reforça que campanhas educacionais e sinalização adequada nos locais onde costumam aparecer os primatas.

Além disso, destaca a importância que os vigias e funcionários dos restaurantes universitários podem ter ao proibir a alimentação dos animais que se aproximam do local. “Eles podem ser os responsáveis por essa orientação direta com alunos nos restaurantes. E após todos aprenderem que não se deve interagir, pode-se trabalhar com algumas orientações mais sofisticadas, como ensinar os procedimentos ao se deparar com animais machucados, por exemplo”, diz.

Já Patrícia Izar complementa e afirma que a coexistência segura entre humanos e animais estende-se para todas as espécies presentes nos câmpus, dentre as quais estão as capivaras, as aves e os gambás. “Sabemos que as pessoas alimentam os animais por carinho, mas quando explicamos o mal que isso pode trazer aos bichos, elas rapidamente refletem e param com essas práticas, porque realmente têm afeto pelos animais”, finaliza.

*Com edição de Gabriela Cecchin