Pública, gratuita, elitista, inalcançável… o que é a USP para quem não está aqui

O JC conversou com jovens de ensino médio, vestibulandos e trabalhadores para saber o quão acessível a USP lhes parece e qual é a relação eles têm com a Universidade

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fotos: Helena Mega, Felipe Saturnino, Leonardo Mastelini e Natalie Majolo

Em uma escola particular de São Paulo, o sonho de entrar na USP começa muito antes do ano de formatura do ensino médio. A menos de um mês da Fuvest 2017, a vestibulanda Viviane Coelho define o seu estado: “A saúde mental está zero”. Com 18 anos, ela quer estudar Relações Públicas e, assim como muitos na sala do cursinho pré-vestibular que estudaram em escola pública, tirou o ano para recuperar a matéria que estava em falta.

“Quero estudar na USP por ser mais perto de casa e porque a avaliação do curso de acordo com o MEC [Ministério da Educação] está em cinco estrelas”, diz ela. A confusão é comum: o órgão que avalia a USP é Conselho Estadual de Educação, e o conceito de estrelas é adotado por publicações comerciais, como o Guia do Estudante.

Thomas Lira, de 17 anos, frequenta o cursinho sem fins lucrativos Maximize (antigo Henfil) junto com o terceiro ano do ensino médio. Na ETEC (Escola Técnica Estadual) onde estuda, a possibilidade de ingressar na USP parece tão distante que nem passa pela cabeça de seus colegas prestar a Fuvest. Já no cursinho, o clima é outro. “Na ETEC, o pessoal idealiza tanto a USP que nem a Fuvest vão tentar. No cursinho, os professores dizem que a educação na USP é superior à de qualquer faculdade particular, não importa o preço que se pague”, afirma o estudante.

A impressão de Thomas, no entanto, é a de que a cada ano fica mais complicado passar na USP. “As políticas de inclusão estão lá de nome; a educação básica no país não é boa e a prova da Fuvest é muito difícil”, explica.

Acesso

A Universidade, por meio do Inclusp (Programa de Inclusão Social da USP), adota um sistema de bônus na nota do vestibular para candidatos que estudaram no ensino público, variando entre um acréscimo de 5% a até 20% na pontuação da primeira fase.

Contudo, o grau de otimismo entre os vestibulandos só aumentou em 2016, porque a oferta de vagas na USP via Sisu (Sistema de Seleção Unificado), a partir da nota do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), aumentou em 57% em comparação ao ano anterior. Agora, serão 2.338 vagas disponíveis para o sistema, enquanto as 8.734 restantes serão preenchidas pelo exame tradicional.

Dentros dessas vagas, vigorará o sistema de cotas que é também adotado pelas universidades federais: 25% delas serão destinadas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas e 49% para estudantes do ensino público. Assim, no momento, o foco dos vestibulandos é o Enem, que será aplicado nos dias 5 e 6 de novembro. O número de inscritos em 2016 ultrapassou os 8,6 milhões.

Coordenador do cursinho comunitário preparatório para o Enem da associação Educafro e graduando em Ciência da Computação pelo Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, Eueliton Júnior participou ativamente das reuniões de negociação do seu Instituto para a adoção da nota do Enem para selecionar os alunos ingressantes.

Eueliton defende que o Enem é um método de seleção mais eficiente que a Fuvest porque, ao ser vinculado ao sistema de cotas, permite que se crie uma metodologia justa, na qual “são selecionados os melhores de cada grupo, e não só aqueles que tiveram dinheiro para pagar um cursinho particular”, acredita. Para ele, hoje, o vestibular não mede a capacidade de aprendizado da pessoa, mas a quantidade de conteúdo ao qual ela teve acesso durante a vida.

O ano de 2016 foi o primeiro no qual a USP reservou parcela das vagas para o Sisu, tendo como resultado o preenchimento de 55% delas. Em 15 dos 105 cursos que abriram vagas pelo sistema, apenas candidatos da Fuvest se matricularam. Somente em 20% dessas 105 graduações o índice de preenchimento pelo Sisu ficou igual ou acima de 75%.

Entre aqueles que buscam a Educafro para conseguirem bolsas de estudo ou se matricularem no cursinho, poucos sabem de antemão que a USP está disponibilizando vagas via Enem, e a Universidade é, muitas vezes, a única referência de instituição pública de ensino superior que eles têm em São Paulo. “Não existe um trabalho nas escolas públicas que leve aos alunos o conhecimento das universidades públicas que existem, ou como fazer para ter acesso a elas. A visão da maioria é: a USP é o impossível, inalcançável. Muitos da periferia acreditam, ainda, que a USP é paga pelo fato dela abrigar a elite”, afirma Eueliton.

“Para mim, o que muda entre o lugar em que eu estudo e a USP são as elites”, afirma Matheus Pereira, estudante do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). “Só são elites diferentes”, diz ele. Nascido em São Paulo, e na contramão do que normalmente pensam jovens pré-universitários, Matheus não considerou em nenhum momento a USP como o lugar ideal para seus estudos em nível superior, ao menos se a graduação fosse engenharia. Movido pela vontade de “conhecer uma realidade distinta” e “morar fora de casa”, ele prestou Enem e foi aprovado na universidade mineira.

Outro fator preponderante na escolha por uma instituição que não a USP era a “imagem negativa” da Escola Politécnica, a qual, afirma ele, não gostaria de se associar. “Também tinha medo de sofrer discriminação ao entrar lá”, diz o jovem negro, de 19 anos. Segundo ele, por outro lado, caso tivesse seguido pela segunda opção de carreira, Relações Internacionais, o projeto de se tornar um uspiano teria sido levado a cabo.

De acordo com as estatísticas da última Fuvest, o número de alunos pretos e pardos aprovados no exame sofreu queda em relação a 2015. O total de ingressantes do primeiro grupo correspondeu a 3,5% do total ano passado, ou, em números absolutos, 391 calouros. O percentual de pardos aprovados caiu a 14% no exame 2016 (em cifras inteiras, 1.427) frente aos 14,8% (1.642) do vestibular precedente.

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foto: Helena Mega

Barreiras e idealizações

Para Caroline Silva, estudante de Odontologia na graduação da Universidade Nove de Julho (Uninove), um impeditivo à escolha da USP como seu destino foi de ordem financeira, embora a Universidade seja “gratuita”. “É caro fazer a Fuvest”, explica ela. Ao seu lado, a amiga Mariana Pereira, de 16 anos, mostra sua insatisfação. “É desnecessário ser tão caro assim, ainda mais se for treineiro”, afirma ela, ainda no segundo ano do ensino médio.

A taxa de inscrição no exame é de R$ 145, mas a Fundação permite isenção total a indivíduos de famílias com renda per capita de até R$ 1.320. A desoneração de 50% é concedida a membros pertencentes a famílias de renda entre R$ 1.320 e R$ 2.640 por pessoa. A Vunesp o vestibular para a Unesp , por exemplo, oferece 75% de isenção a seus candidatos.

O custo só para a realização da prova é uma barreira para atravessar a faixa que aparta os candidatos de uma das 11.072 vagas na Universidade de São Paulo. Além, é claro, da própria dificuldade do vestibular de duas fases: a primeira com 90 questões em formato teste e a segunda com três dias seguidos de perguntas dissertativas. “Das provas que prestei, foi a mais difícil”, aponta Victoria Sena, aluna do cursinho preparatório da FEA e estudante do Instituto de Astronomia e Geofísica (IAG) da USP. Já no segundo ano de Meteorologia, ela pretende mudar de curso: Audiovisual é a sua meta para 2017.

Assim que conversa com pré-universitários, ela afirma perceber a idealização que fazem do espaço da Universidade. “Quando tenho contato com vestibulandos de outros lugares”, diz, “fica claro que eles endeusam muito a USP”.

É uma visão destoante da de Luís Medeiros, 73, um ex-metalúrgico de Santo Amaro que hoje vende bebidas no Parque do Ibirapuera. “As pessoas falam que lá é muito violento, né?”, diz ele, referindo-se à USP. Ele afirma ter visitado a Universidade uma única vez, quando levou a cachorra ao hospital veterinário da USP. A seu ver, “não há segurança em lugar nenhum hoje em dia”. Mais de um ano após a instalação do plano koban de policiamento comunitário com policiais permanentes no campus, furtos e roubos na USP, até setembro, eram 106 (10 de veículos) e 20, respectivamente, frente a 139 furtos (15 de veículos) e 34 roubos de 2015.

Victória Pereira, 18, estudante da ETEC Parque Belém, segue a trilha de ser aprovada, justificando a escolha pela instituição. “As pessoas sempre colocaram um rótulo, sabe?”, reflete. “A USP é isso”, e mantém a mão esquerda num patamar alto, “e as outras faculdades, isso”, e desce a mão a níveis mais baixos. Para Victória, a tradição constitui a base dessa visão. “Se você fez um curso na USP, mesmo que você não tenha sido um bom aluno, mesmo que não tenha se esforçado totalmente, o nome USP já vai te levar pra cima”, acredita ela.

“Se você sair com um diploma da USP, você está melhor que os outros”, observa Matheus Lacerda, taxista de 21 anos que trabalha no campus da Cidade Universitária. Ex-aluno do cursinho da Poli, almejava cursar engenharia na escola. Após não ter sido aprovado, conseguiu o ingresso no Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e diz estar satisfeito, embora creia que o ensino não seja tão bom quanto na Politécnica. Sabedor dos atuais problemas na Universidade, ele não lhe desmerece as outras qualidades. “Para mim, é a melhor da América Latina, ainda é”, afirma. “Mesmo com o corte de verbas e a falta de dinheiro, aqui ainda é a melhor”.