O primeiro passo tímido contra as fraudes

Enquanto outras Universidades já dispõem de ações efetivas para evitar irregularidades nas autodeclarações, USP expulsa aluno fraudador pela primeira vez

Por Fernanda Pinotti

Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão da USP  Foto: Erika Yamamoto/Assessoria de Imprensa da USP

Pela primeira vez nos 86 anos de existência da Universidade de São Paulo, um aluno foi expulso após julgamento por fraude de ações afirmativas. Braz Cardoso Neto, de 20 anos, foi desligado do Instituto de Relações Internacionais (IRI-USP) no dia 13 de julho por ter fraudado cotas raciais e sociais.

A decisão foi tomada pela Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão da USP,  uma instância ligada à Pró-Reitoria de Graduação da Universidade, responsável por analisar as denúncias de fraudes envolvendo autodeclaração de pertencimento ao grupo PPI (pretos, pardos e indígenas). No caso do estudante de Relações Internacionais, não foi possível comprovar conformidade de seu fenótipo — características físicas como cor da pele, textura do cabelo, traços do rosto e outras  — com à autodeclaração feita, na qual ele alegou ser pardo. Além disso, Braz também não conseguiu comprovar que atendia ao critério social para preencher a vaga, mesmo tendo declarado vir de uma família de baixa renda ao prestar o vestibular.

O JC antecipou no final de março que um dos processos acompanhados pela Comissão se encaminhava para a fase de anulação da matrícula do estudante, em matéria que discorre sobre a falta de ações efetivas por parte da Universidade para evitar fraudes. A USP ainda se mostra resistente a adotar processos de heteroidentificação — nos quais uma banca se reúne para averiguar a veracidade das autodeclarações. E sinaliza um avanço lento com a expulsão de Braz, enquanto outras instituições já possuem ações eficazes. A Unesp, por exemplo, já desligou mais de 100 alunos que não conseguiram comprovar aquilo que haviam declarado, desde a criação de comissões de heteroidentificação em 2016.

O Coletivo Lélia Gonzalez, formado por alunas e alunos negros do curso de Relações Internacionais foi responsável por apresentar formalmente a denúncia à diretoria do IRI. “Assim que ele entrou, muitos alunos da turma se sentiram incomodados por saber que ele estava lá graças às cotas PPI e sociais, já que a situação dele não parecia ser aquela declarada”, explica Matheus Gregório, aluno e integrante do Coletivo. “Essas pessoas trouxeram as reclamações para a gente e também trouxeram alguns indícios de que a declaração social dele talvez não estivesse certa”, ele conta. O próximo passo foi juntar  as provas de fraude na questão social e escrever um documento falando sobre a fraude na questão racial.

Para Matheus “o debate da heteroidentificação na USP tem avançado de forma muito tímida”. Ele considera que este primeiro desligamento por fraude funciona mais como um alerta de que precisamos averiguar as autodeclarações do que como a sinalização de um avanço na forma que a Universidade lida com o problema. “Por mais triste que seja um processo administrativo custoso, que acaba por retirar a vaga de um aluno da graduação, avançamos no debate, mesmo que não tenhamos avançado na heteroidentificação”, completa.

O estudante também destaca a importância de debater alternativas para que essas vagas possam ser reocupadas por quem de fato atende aos critérios do uso de ações afirmativas. “Trouxemos à tona um debate superpropositivo”, comenta. O vestibulando que seria o próximo na lista de aprovação pela qual Braz entrou tem inclusive o direito de abrir uma ação para poder ocupar esta vaga. 

No início de 2018, como uma resposta organizada às constatações de fraudes em diversos cursos da USP, surgiu o Comitê Antifraude às Cotas Raciais, explicam Lucas Módolo e Igor Leonardo — ambos estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, local onde a iniciativa nasceu. “A nossa atuação acontece no sentido de dialogar com instituições, com o corpo discente da USP e principalmente com a própria administração da Universidade, mas também nos empenhamos em propor formulações pelo Direito ao problema verificado”, eles completam.

Os dois estudantes e membros deixam muito claro que a intenção do Comitê nunca foi questionar as autodeclarações ou avaliar qualquer estudante preto, pardo ou indígena que tenha ingressado pelo sistema de reserva de vagas. “Nós optamos por criar um canal de recebimento de denúncias anônimas de possíveis casos de fraudes”, ressaltando que esse método permite o envolvimento de toda a comunidade acadêmica na defesa da política de cotas.

Desde que o canal de denúncias do Comitê foi inaugurado, no final de 2018, já foram recebidas mais de  mil denúncias de diversos cursos  de todos os campi da USP. Segundo os dois, o principal resultado desta atuação “é a ampliação do debate das fraudes em toda a Universidade”. Várias unidades de ensino e pesquisa passaram a se mobilizar no sentido de formalizar denúncias graças a essa iniciativa.

Para Igor e Lucas, o desligamento do estudante de Relações Internacionais representa um avanço significativo no combate às fraudes. “Este caso abre um importante espaço para novos posicionamentos institucionais, tanto pelas diretorias e congregações das unidades quanto pela Administração Central da USP”. Os dois consideram que a decisão representa um precedente administrativo de alta qualidade. Eles também esperam que a Universidade compreenda a necessidade de instituir uma comissão permanente de heteroidentificação para atuar antes que seja realizada a matrícula dos candidatos, de preferência já para o próximo vestibular de 2021.