Arte do ser

Individualidade e coletivo, experiência e introspecção, dentro e fora de sala de aula. Artistas que estudaram na USP contam sobre a passagem pela universidade

Por Diogo Bachega e Julia Custódio

Arte: Julia Custódio

Laerte Coutinho: jubilada do curso, lançada para os quadrinhos

Imagem: Rafael Roncato/ O Globo

Às vezes, escolhas equivocadas podem levar ao melhor caminho. Esse foi o caso da Laerte Coutinho.

A quadrinista e cartunista ingressou no curso de Música na USP, mas trancou a matrícula após receber o conselho de um professor. “Ele me aconselhou a largar o curso e ir desenhar. Ele disse: ‘Está na cara que a sua vontade não é música, é desenho’”. Quando decidiu voltar, Laerte já havia sido jubilada, então prestou novamente o vestibular e entrou em Jornalismo, curso que também trancou. Mas, apesar da passagem não linear na USP, a vivência dentro da universidade proporcionou um grande encontro de pessoas e ideias para a artista.

A revista Balão foi uma das primeiras fanzines de quadrinhos publicadas no Brasil. A Balão foi idealizada por Laerte e Luiz Gê após se conhecerem durante a Semana de Editoração da Escola de Comunicação e Artes da USP (ECA-USP), em 1972. No total, foram nove edições da revista, que rompiam com o modelo das histórias em quadrinho da época e abriram espaço para que artistas universitários pudessem mostrar seus desenhos críticos.

Além da Balão, Laerte se engajou artisticamente com o movimento estudantil. “Eu usei o meu tempo na USP para fazer atividades como a Balão, produção de cartazes para atividades culturais. Naquela época estava se reanimando o movimento estudantil, que depois de 1968 estava se recompondo. Eu participei e gostava disso: fazer desenhos, participar de jornais”, conta.

Mesmo não se considerando uma boa aluna durante o período que passou pela universidade, Laerte não deixou de contribuir para a produção artística da USP e se lançou como um dos maiores nomes dos quadrinhos e cartuns do país. 

Andréa Del Fuego: filha do ensino público e mãe de mentira

Imagem: Twitter/@andreadelfuego


Costuma-se dizer que são os verbos que movem a escrita, mas foram os substantivos que abriram a porta da ficção para Andréa Del Fuego. Foi numa aula de gramática, enquanto a professora explicava aos alunos essa classe morfológica. “Ela me levou a pensamentos abstratos sobre o que era substância, o que eu acho que foi a primeira aula de filosofia que eu tive”, conta a escritora.

Entre as palavras apresentadas por essa professora de uma escola pública de São Bernardo, uma chamou mais sua atenção: a mentira. “Eu me apaixonei pela escrita ali, quando ela propôs que escrever ficção seria mentir”, diz. 

A escritora, que não vem de uma família de leitores, conheceu no ensino público a leitura e a escrita e através dele leu algumas das suas principais influências: Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, Graciliano Ramos e Machado de Assis, João Cabral de Mello Neto e, mais tarde, Guimarães Rosa. 

Na adolescência, escreveu contos que conciliavam erotismo e um realismo mágico, influenciado pelo que lia na época. Essa produção inicial rendeu sua primeira publicação, decisiva para sua trajetória como escritora. “O ISBN, que é o registro que a gente faz na Câmara Brasileira do Livro, é como se fosse o RG, uma certidão de nascimento”. A partir dali, ela tinha nascido alguém que escreve e publica. 

Formada em um curso técnico de Publicidade, trabalhou com cinema publicitário e fotografia por anos e ingressou na faculdade só mais tarde, 30 e poucos anos, no curso de Filosofia da PUC. Quando já quase se formava, fez a prova de transferência para a USP e teve que começar a graduação quase que do começo. “Foi ótimo, porque eu acabei fazendo duas universidades, duas graduações de filosofia”.

Engravidou no meio do curso, teve que parar por um ano, voltou e se formou. Depois voltou mais uma vez para o mestrado em Estética, onde enxergou um caminho para pensar sua escrita.

Andréa enxerga a USP como um marco essencial de sua trajetória como escritora e um ambiente verdadeiro de transformação. Acredita que a universidade já não é um cofre de conhecimentos escondidos, apesar de enxergar a necessidade de abrir cada vez mais esse espaço.

Para o leitor do JC, deixou de presente três indicações: Cem anos de solidão, Fogo pálido e O evangelho segundo Jesus Cristo.

Ana Hikari: vivência também é conhecimento

Imagem: Divulgação

Mesmo intolerante ao álcool, Ana ficava sentada em cima do cooler de cerveja, esperando as bebidas esfriarem e impedindo que outros alunos pegassem antes da hora. Estar ali foi uma das maneiras que a então estudante de Artes Cênicas encontrou de manter contato com pessoas de outros cursos e ter a vivência universitária além da jornada de mais de oito horas diárias de aulas e ensaios para peças na ECA.

Ana Hikari ingressou na USP em 2013 e desde então questiona o isolamento do curso de Artes Cênicas do restante da universidade. Com cargas horárias pesadas, os alunos do curso encontram dificuldades para participar de atividades além da sala de aula, algo que na opinião da atriz prejudica a formação dos alunos. O pouco contato, até mesmo com os outros cursos dentro da ECA, afeta na divulgação das peças estreladas pelos atores e que não chegam ao restante da comunidade uspiana. 

Mas o problema do alcance dessas produções artísticas da universidade vai muito mais além — ou melhor, não vai mais além dos muros da USP. “Acho que a principal coisa que tem que ser questionada na universidade, é como que as produções geniais que existem dentro da USP podem chegar à sociedade e como é que a sociedade pode entrar mais na USP, seja através das cotas, seja através dos questionamentos dos processos seletivos elitistas”, aponta a atriz.

Ana lembra com carinho da graduação e das oportunidades dentro e fora de sala de aula que a prepararam para a vida profissional na frente das câmeras. Os coletivos sociais que participou, as peças laboratório, amizades, disciplinas optativas e até as conversas sentada em cima do cooler. “Tudo é complementar. Eu não acredito em conhecimento isolado. Eu acho que a gente tem que saber um pouco de tudo e se conectar com um pouco de tudo, quanto mais aberta a nossa mente estiver, mais questionadores vamos nos tornar.”

Marcelo D’Salete: um grande herdeiro da aura ecana

Imagem: Twitter/@marcelodsalete

Marcelo D’Salete entrou na USP no início dos anos 2000, quando grandes nomes do quadrinho brasileiro, como Laerte e Luiz Gê, já tinham passado pela universidade. Ele conta que existia uma forte aura da USP como um centro onde diversos artistas estudaram. E continuavam estudando: além do próprio Marcelo, outros nomes, como Gabriel Bá, gêmeo de Fábio Moon — dupla que ganhava visibilidade no mercado nacional e internacional —, levavam para frente a tradição ecana e uspiana de narrativas gráficas.

“A passagem pelo curso de Artes Plásticas foi essencial para repensar principalmente o meu modo de elaborar o desenho, de pensar as possibilidades de narrativas visuais e tal”, disse o autor em entrevista ao Jornal do Campus. Ele também diz que foi muito útil ter à disposição a coleção de quadrinhos europeus da biblioteca da ECA. “Foi muito importante ter acesso a essa produção de revistas estrangeiras, justamente para conhecer e poder apreciar o traço de outros artistas”.

D’Salete já fazia quadrinhos quando entrou na faculdade, mas começou a publicar no início da graduação, em revistas como a Quadreca e a Front. Também chegou a fazer o curso sobre quadrinhos de Waldomiro Vergueiro, coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos, da ECA.

Marcelo D’Salete acha que faz falta não ter bibliotecas dedicadas a quadrinhos na universidade. “Não são tantas Gibitecas em São Paulo. Tem a Henfil e algumas outras, mas considero que seria muito interessante ter um espaço reservado especialmente para histórias em quadrinhos dentro da USP.”