Mães à luta

por Dani Alvarenga

Mulheres no Conjunto Residencial da USP precisam lutar diariamente pelo direito de uma moradia decente. Foto: FREEPIK/Reprodução

Eu me lembro de brincar com minhas bonecas aos pés da minha mãe, enquanto ela estudava para a faculdade. Sou filha de uma mulher que deu à luz muito jovem, com apenas 20 anos. A graduação era mais que um sonho, era uma necessidade para ela poder me sustentar. Por isso, quando soube que a Universidade de São Paulo tinha o “Bloco das Mães”, no qual mulheres que estudam na instituição moram com seus filhos, me pareceu que finalmente as faculdades, ou pelo menos a USP, estavam entendendo que não podiam ser ambientes excludentes. 

Com a proximidade do Dia das Mães, pensei em como aquele espaço é simbólico. A comemoração não é apenas sobre presentes, mas também é uma forma de lembrar todas as lutas que uma mulher precisa enfrentar para garantir os direitos dos seus filhos. Ter uma residência dentro da universidade seria menos uma batalha. Mas logo percebi que o buraco era mais embaixo –  e ficava do lado das rachaduras, vizinho às infiltrações. Apesar da moradia ser uma conquista social, havia muito abandono. “Não existe Dia das Mães, não existe cartazes falando sobre isso no campus, não existe sequer um parabéns, para ser sincera. Nunca passaram aqui para fazer uma ação coletiva com as mães e as crianças. Eu saio daqui esse ano sem ver sequer uma atitude de reconhecimento e generosidade em relação à maternidade na USP”, me explicou Cintia Silva, de 34 anos, mãe de uma menina de 11 anos. 

Cintia se mudou para um apartamento nos Conjuntos Residenciais da USP (CRUSP) após fazer transferência externa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Campinas. Lá, ela enfrentou dificuldades, uma vez que não há moradia para as mães. Além disso, por ser natural da Bahia, não estava acostumada com o frio paulista. “Minha filha pegou uma pneumonia e quase morreu. Eu vim do nordeste, não sabia que existia uma roupa certa para não passar frio. Se continuasse daquele jeito, a gente não tinha condições nem de sobrevivência”, relatou Cintia. 

Ela descobriu que a USP era a única instituição no Brasil que oferecia uma moradia para as mães. Cintia viu na faculdade a oportunidade de dar melhores condições para si e para sua filha. “Quando eu cheguei aqui, era tanta felicidade, eu olhava para o céu, para as árvores e só agradecia. Eu lembro de ver carrapato pulando nas paredes e pensar ‘ai, isso é o de menos, eu resolvo’”. Esse relato da Cintia resume bem o que o CRUSP representa para tantas famílias: uma chance de sobrevivência. 

Os blocos de moradia do CRUSP ficam ao lado do bandejão central da instituição. Um longo corredor une os prédios em que os alunos habitam, que são distinguidos por letras. O Bloco das Mães é o A, o mais isolado de todos. Ao andar até lá, eu só ouço meus passos. A comum sinfonia de conversas que cercam o restaurante universitário fica para trás. O primeiro sinal que vejo de que aquele lugar pode ser ocupado por mais do que jovens adultos é um carrinho de bebê guardado debaixo das escadarias do bloco B. Esse ainda não é o local destinado para as mães, mas eu já sabia que algumas famílias precisaram ficar em residências comuns. 

“Há mães em outros blocos também. A quantidade de moradias não é suficiente. Elas têm que dividir apartamento, porque lá eles não colocam um [apartamento] só para as mães”, informou-me Yuli Torres, de 33 anos. Ela mora no CRUSP desde 2021, com sua filha de 5 anos. A conversa com Yuli me preparou para um cenário já conhecido nas moradias da USP: depredação e falta de assistência. Ocupado por 12 famílias, as construções são mais preparadas para acomodar crianças, mas possuem diversos outros problemas de estrutura. No meu caminho para visitar o local, consigo ver infiltrações por uma ampla janela. 

Thais Ananda Gouvêa, de 29 anos, se mudou para o Bloco das Mães em 2021, após conseguir a guarda da sua sobrinha de 5 anos. Ela já morava no CRUSP e, por isso, me relatou a diferença entre os apartamentos. “É bom porque você não precisa morar com outros moradores, eu morei com três pessoas no bloco D. Mas, por outro lado, lá [Bloco das Mães] a estrutura física é pior do que a dos outros blocos comuns. Eu tenho problema de rinite, porque tem mofo, também tenho que lidar com cupim. Atrás tem uma floresta, e só agora conseguimos cortar o mato, lá tem muita aranha e formiga”, afirmou a estudante. Realmente, quando chego na lateral do bloco A, me deparo com uma pequena floresta, com pouquíssima iluminação. Sinto um cheiro esquisito de dejetos. Olho para o chão e, perto da entrada da moradia, vejo um bueiro com a tampa quase destruída.

Decido entrar no bloco e sigo em direção a um corredor no térreo. Além das infiltrações, há também rachaduras e buracos nas paredes. Vou em frente e vejo a cozinha, percebo os problemas que já tinha ouvido: há apenas 2 mesas e um único fogão antigo para as 12 famílias. “A cozinha sempre está cheia, e você quer ganhar tempo, não ficar o dia inteiro cozinhando”, explicou Yuli Torres. Apesar de ser permitido levar as crianças para comer nos bandejões, nem todas as mães conseguem fazê-lo. Isso porque é necessário colocar o nome dos filhos em uma lista para que o acesso seja liberado, porém ela é atualizada com pouca frequência. 

“Estou com problemas com a lista da minha filha no restaurante. Estou esperando mais de dois meses e, até agora, nada”. Yuli Torres parou de frequentar o bandejão após passar por uma situação incômoda. Ela e sua filha pegaram suas bandejas para comer, se serviram e, na metade da refeição, uma funcionária as interrompeu. “Ela começou a gritar que minha filha não estava na lista de acesso, logo não tinha direito de pegar uma bandeja, não tinha direito de comer. Eu passei por um constrangimento”, relatou Yuli. Ela já enviou o nome de sua filha para a assistência social, mas nada foi resolvido.“Tem outras mães que estão passando por isso. É um abandono”. 

Yuli não estava exagerando. No fim da minha visita ao local, descubro: o chamado “Bloco das Mães” é, na verdade, só aquele pequeno corredor no primeiro andar. Esse é o espaço que a USP disponibiliza para as mães universitárias. Entendo, finalmente, o que Cintia Silva quis dizer quando me relatou: “Viver o Dia das Mães no CRUSP é como viver todos os outros dias aqui: uma eterna luta. Viver no CRUSP é uma resistência muito grande, você resiste às condições de insalubridade, de subsistência e, digo mais, de desespero, porque você tem uma responsabilidade com a sua criança”.