Formação de docentes passa por reforma

Alteração gera debates em institutos como a FEUSP e FFLCH, onde afetará mais de 2600 alunos

Por Matheus LopesNatan Novelli Tu

(foto: Matheus Lopes)

Após deliberação do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE), as graduações de pedagogia e licenciatura das universidades estaduais passarão por reforma curricular que alterará a formação dos futuros docentes. A deliberação CEE nº 154/2017 prevê, entre outras mudanças, a revisão de conteúdos do Ensino Fundamental e Médio, o rearranjo da carga horária das disciplinas e a adesão à proposta da Base Nacional Comum Curricular, e é questionada por alunos e professores da USP. Os cursos devem enviar projetos de currículo até o fimdeste ano, precisando se adequarem até 2019, para não correrem o risco de perder a licença para emissão de diplomas. Essa é uma realidade que pode afetar mais de 2600 alunos, apenas nas Faculdades de Educação (FEUSP) e Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), além de outros institutos.

Segundo Bernardete Gatti, presidente do CEE, a demanda surgiu de estudos que mostravam o despreparo de professores nas salas de aula. “Um coordenador pedagógico ajuda, mas se não houver ninguém, o docente fará o possível, o que não é bom”. Por isso, desde 2012, é discutida uma reforma que delimite os conhecimentos de um profissional da Pedagogia e da Licenciatura – sendo a área de atuação do primeiro a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, e o segundo os anos finais do Fundamental e Ensino Médio.

Revisão curricular

Dentre as medidas contidas na deliberação, determina-se 600 horas de revisão dos conteúdos da educação básica à Pedagogia, e 200 dos objetos de ensino do docente às Licenciaturas. Para estes, prevê-se uma revisão de Língua Portuguesa. Aos primeiros, quase um ano seria reservado às disciplinas de química, biologia, e outras. Isso é visto como descabido por Marcos Neira, professor e presidente da Comissão de Graduação da FEUSP: “Pensamos que se deve saber o conteúdo, mas um bom professor é o que faz uma leitura crítica da realidade e escolhe os melhores temas e situações didáticas aos alunos”.

Marcos avalia essa medida como reflexo da precariedade do ensino básico, criticando a ideia de pensar exclusivamente na formação de professores e no currículo da educação básica: “É preciso melhorar a condição de trabalho e o salário do professor, preservando cargas horárias necessárias para planejamento e outras atividades. A prioridade devia ser cuidar do sistema estadual de educação básica.” Ele comenta que algumas dessas matérias específicas precisariam ser feitas fora da FEUSP, devido à falta de professores especializados na unidade. Mesmo assim, a maior perda, segundo ele, seria trocar disciplinas mais reflexivas por outras mais conteudistas.

Quanto a isso, Bernardete não vê a deliberação como tecnicista, entendendo que o curso de Pedagogia deve formar em primeiro lugar professores, não pesquisadores – sendo necessário reaprender conceitos. Ela pondera que a revisão não é dispensável, já que o ingresso à universidade acontece a partir de fórmulas e memorizações: “A ideia é voltar aos fundamentos. Não será estudado outra vez como se resolve uma fração, mas os fundamentos da estrutura numérica e a lógica por trás das operações de conjuntos naturais, que permitem pensar em metodologias.” Ainda nisso, ela lembra das práticas de componente curricular (PCC),  expostas na deliberação, mas já presentes em discussões anteriores. Nelas, o graduando é motivado a conhecer o conteúdo ao mesmo tempo em que aprende a relacioná-lo à vida de seu estudante, e por isso, a importância de rever com outra abordagem.

Marcos ainda contesta, apesar de ver a relevância das PCCs, que toda atualização de currículo se preocupa com a aplicabilidade à vida real – ou seja, a ideia das PCC. Para ele, 600 horas é um tempo precioso a algo já espalhado pela grade atual da FEUSP, podendo ser utilizado para mais disciplinas reflexivas, como questões de gênero, raça e sexualidade. Na deliberação, essas temáticas estão previstas nos cursos de Licenciatura, já que os alunos do Ensino Médio e do fim do Fundamental seriam mais maduros. No entanto, a Pedagogia vê como importante os temas também serem tratados na graduação de seus formandos.

Além disso, ele comenta sobre a autonomia das instituições, que possuem particularidades. “É complicado definir a carga horária específica para cada tipo de conhecimento, e às vezes definir o conhecimento [a ser ensinado], porque estamos formando professores que trabalharão em todo o país”. Todavia, Bernardete frisa que a autonomia é mantida, pois os limites estão na carga, enquanto a metodologia utilizada é desenvolvida por cada curso.

Busca pela padronização

Para evitar o descompasso entre os conteúdos ensinados, a deliberação se pauta na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – documento federal em fase final de desenvolvimento que pretende padronizar os princípios de ensino e conhecimentos básicos da formação de um brasileiro. Assim como a deliberação, Bernardete crê que a Base não terá dificuldade em ser aprovada, pois o texto apenas sistematiza o que já acontece. “O que se deve fazer da primeira a quinta série? Alfabetizar. É o que está escrito, nada muito diferente do que o currículo de São Paulo ou Paraná já propõem e que é encontrado no mundo inteiro.”

Marcos se contrapõe dizendo que isso eliminaria as particularidades de cada currículo – como aspectos geográficos e culturais –, e lembra que, apesar da BNCC já constar como objeto de análise dos docentes na deliberação, o documento só será votado em dezembro. O professor considera ainda inadequado tomar o documento como pronto a ser executado, pois os alunos da Pedagogia “discutem as propostas curriculares existentes, não para fixá-las, mas para conhecer as concepções de ensino em disputa”.

Flávia Toledo, estudante de pedagogia da FEUSP e diretora do Centro Acadêmico Professor Paulo Freire (CAPPF), vê o caso como mais um exemplo de imposição, lembrando que uma reforma curricular – debatida por mais de dois anos, aprovada pela Pró-Reitoria e em vigência desde o começo desse ano – terá de ser repensada para se adequar à BNCC. “Cursos de licenciatura que passaram por revalidação há poucos meses já estão sendo questionados, podendo perder sua validade”, diz. Ela acrescenta que as reformas eram feitas sempre internamente, sendo a primeira vez que, sem diálogo, a mudança é exigida de fora da USP, em instâncias superiores.

Caminhos da reforma

Essa falta de diálogo é contestada pelo CEE. “Conversamos com os coordenadores de mais de 160 licenciaturas. Houve uma reunião com todos os coordenadores da USP, Unesp e Unicamp, mas não recebemos nenhum documento da FEUSP.” Ela lembra que na formulação de deliberações anteriores, enquanto algumas licenciaturas propuseram mudanças, a FEUSP pediu apenas anulações. Segundo a presidente, alguns cursos da USP, como Música ou Artes Cênicas, discutiram projetos de alteração, apresentados a deliberações anteriores: “Há dois anos, não paramos de receber coordenadores de cursos com projetos. Discute, vai e volta. Não temos dois projetos iguais.”

De qualquer forma, Marcos comenta ser muito difícil reestruturar o curso; para abarcar apenas os conteúdos de revisão, ou algumas disciplinas deverão sair, ou a duração mínima dos cursos aumentaria. Com a falta de professores e a crise orçamentária, Flávia aponta outras consequências: “Vão se ampliar os contratos temporários de professores, que é a terceirização do trabalho docente, ou vão ministrar aula em EAD, como aplicaram à disciplina de Libras”.

Aqueles contrários à reforma organizaram mesas para discutir o tema, além de uma paralisação no último dia 25 de agosto, na FEUSP. Eles ainda contaram com o apoio do deputado Carlos Giannazi, do PSOL, para recorrer da deliberação por vias jurídicas. Além disso, na segunda-feira, dia 11, o CEE se reuniu em uma primeira audiência com a diretoria da FEUSP, mas não foi possível obter as informações até o fechamento desta edição.