Análise: O tempo em círculo, em linha e a silhueta do fracasso moderno 

Em exposição temporária até 19 de junho, Centro Maria Antonia apresenta diferentes percepções de temporalidade, de projeto de país e de grandes marcos da história brasileira

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por Luanne Caires

Fotos: Giulia Portelinha/JC

“Pessoas como nós, que acreditam na Física, sabem que a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente

Albert Einstein

É com as palavras de um dos maiores físicos do século 20 que a exposição Contar o tempo, em cartaz no Centro Universitário Maria Antonia, recebe seus visitantes. Inaugurada em 30 de março, a mostra foi organizada durante o período da pandemia de covid-19 e teve como uma de suas inspirações a suspensão do tempo e as mudanças nas percepções temporais que caracterizaram os dois últimos anos. A diversidade de formatos expostos, que incluem artefatos arqueológicos, desenhos, fotografias e pinturas, mescla elementos históricos e contemporâneos, além de um rol de artistas de diferentes gerações, mais da metade deles ligados à USP. Em um ano marcado por grandes comemorações culturais e políticas, como o Bicentenário da Independência e os cem anos da Semana de Arte Moderna, a exposição se destaca não só pelo senso estético, mas pela potência política, social e ambiental. 

A exposição parece, em um olhar superficial, seguir uma linha cronológica linear, desde a arte de registros arqueológicos até os conflitos políticos do atual governo. Essa impressão, contudo, é desfeita já no primeiro contato com as obras. Na sala dedicada ao núcleo arqueológico, tradição e contemporaneidade se misturam de maneira sutil, reforçando a circularidade que marca a percepção de tempo de muitas culturas, como a de povos originários. Nesta noção de tempo, gerações e gerações de seres humanos mantêm uma maneira semelhante de produção, o que não reflete um estado estagnado, mas sim a manutenção de um saber precioso, como aponta Dária Jaremtchuk, curadora da mostra e vice-presidente do Maria Antonia, em entrevista ao Jornal do Campus. 

Artefatos de povos indígenas como os Guarani, Tupinambá e Kaingang, obtidos junto ao Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE),  ativam a sensibilidade não por um eco do passado, mas por sua presença no aqui e agora. E, no presente, inspiraram a produção das artistas Adriana Moreiro e Marina Zilbersztejn. Ambas trabalharam a partir de imagens de artigos acadêmicos sobre arqueologia para estampar as peças de Cacos (2022), feitas a quatro mãos exclusivamente para a exposição Contar o tempo.   

A luminosidade homogênea e a falta de barreiras na disposição dos elementos favorecem o equilíbrio entre artefatos  arqueológicos e obras feitas para a exposição. No chão, apoiadas às paredes, peças da série Cacos.

Para Dária, ao partir de um plano “chapado” e dar corpo às ilustrações, Adriana e Marina materializam vestígios de um tempo não movido pelo relógio e que, muitas vezes, não sabemos definir quando ocorreu. A disposição das obras no chão também contribui para a integração com o público e com o próprio tempo: “São peças contemporâneas e as pessoas acham que são pedaços de pedra. Isso causa certa confusão, é como se tivesse ali um jogo visual e sensorial importante”. 

O futuro moderno e sua realidade fracassada

Além das colunas do Alvorada, a instalação Construção Brasileira dialoga com a importância da arquitetura e do paisagismo no projeto moderno ao combinar metal, eternit e plantas típicas de propostas paisagísticas.

Nas salas seguintes, a modernidade se faz traço, fotografia e pintura. A referência à Semana de Arte Moderna de 1922 se evidencia, por exemplo, em gravuras de Rosana Paulino, que incluem as obras Autorretrato com Máscaras Africanas II. Volpi (1998) e Autorretratao com Máscaras Africanas II. Tarsila (1998) — tanto Alfredo Volpi quanto Tarsila do Amaral são grandes nomes da pintura modernista brasileira. 

Ao subir as escadas, o visitante se depara com dois conjuntos  que o deslocam no tempo e no espaço para Brasília.

A instalação Construção Brasileira (2022), do artista e arquiteto Talles Lopes, faz uma paródia à apresentação dos projetos arquitetônicos de Brasília no fim da década de 1950 e retrata diversas variações populares das colunas do Palácio da Alvorada, projetado por Oscar Niemeyer. O projeto da cidade, que representava em si o projeto desenvolvimentista do Brasil, é colocado em contraste com sua expressão no hoje, marcada por uma “apropriação decorativa”, nas palavras de Dária.

Passado e presente também se encontram na série fotográfica Dupla Exposição (2022), de Lais Myrrha. Em uma das peças, a sobreposição da pintura A Coroação de Dom Pedro I, de Jean-Baptiste Debret, à fachada do Palácio do Planalto produz uma reflexão sobre a permanência de concepções arcaicas que marcavam o período imperial, apesar de agora os espaços políticos contemporâneos serem outros.

Neste sentido, a curadora da exposição destaca a obra Dupla Exposição #9, na qual a vista interna de uma sala do Supremo Tribunal Federal é sobreposta à vista interna do Palácio do Itamaraty com o quadro Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo. “Essa tem a ver com o sete de setembro do ano passado, uma fotografia publicada na [revista] piauí, do [ministro Luiz] Fux procurando defender o Supremo contra uma invasão, na verdade, um golpe planejado por apoiadores do atual governo”, explica Dária.

O fracasso do projeto de modernidade e bem-estar social ganha ainda mais força na sala que traz a instalação A História Natural e Outras Ruínas, de Marcelo Moscheta, e as fotografias e telas inéditas de Dora Longo Bahia. O conjunto de obras mostra a devastação ambiental advinda da exploração econômica, e o tamanho das produções reforça o efeito de enormidade do problema. Dária explica que essa sala se insere no gênero História da Paisagem, mas que, neste caso, é uma paisagem construída pelo homem. “Uma pintura humana que não tem nenhum humano nela”, completa. 

O reflexo das amplas pinturas de Dora Longo Bahia se mescla à obra fotográfica da artista e potencializa a sensação de ruína.

A presença humana é retomada, por fim, no vídeo Luz del Fuego II (2018), de Carmela Gross, produzido a partir de uma seleção de 190 fotografias recolhidas entre 2012 e 2016 e que registram conflitos em diversos países. Embora não tenha sido feito originalmente para a exposição Contar o tempo, o formato de sua apresentação é inédito, em uma escala maior do que a já exibida anteriormente. 

Exemplos de fotografias exibidas na obra Luz del Fuego II. Crédito: Carmela Gross

Um tempo que conta também sobre a USP

A seleção de parte dos artistas que compõem a mostra é, por si só, um encontro de diferentes gerações que passaram pela Universidade de São Paulo: as mestrandas Adriana Moreno e Marina Zilbersztejn, o doutorando Diogo de Moraes, as doutoras Rosana Paulino e Clara Ianni e as professoras Carmella Gross e Dora Longo Bahia. Em alguns casos, como o de Rosana, a própria exposição reflete com exclusividade uma trajetória de estudante de graduação a artista madura. Dária revela que um dos desenhos expostos, o que retrata uma boneca, foi um presente da artista a um de seus professores, quando ainda era estudante. 

A história do Maria Antonia também está retratada ali. Na instalação sonora Con(s)certo para Nomes Sem Corpos ou Praça aos Nomes Sem Corpos, do artista Elilson, cinco bancos equipados com caixas de som reproduzem cartas destinadas aos desaparecidos políticos da época da ditadura civil-militar brasileira. Uma das cartas é dedicada ao próprio centro cultural, cujos edifícios históricos pertenceram à antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e foram espaço de resistência política às barbaridades daquele período. 

A referência a práticas ditatoriais também se faz presente na instalação de Clara Ianni na Biblioteca Gilda de Mello e Souza, situada no Maria Antonia. A obra de Clara expõe um livro com catalogação bibliográfica encontrado em um sebo do centro de São Paulo. No verso da contracapa, a inscrição escrita à mão: “Ideologia no livro didático”. O conjunto faz refletir sobre a censura e o simbolismo de se devolver a uma biblioteca um livro que foi desalojado de outra. 

“Esses são dois trabalhos que se conectam à história do prédio, à história do que foi a USP. Também são trabalhos que levam à nossa exposição permanente, então a proposta é que integrem as duas exposições”, explica a curadora. 

Arte como integração, provocação e entrega

Fora dos circuitos artísticos mais conhecidos da capital paulista, como o do MASP ou da Pinacoteca, a exposição no Maria Antonia atrai seu público via convite dos próprios artistas, o perfil da mostra no Instagram e pela beleza da fachada — feita pela artista Nina Lins, ex-aluna da USP, que também é responsável pela identidade visual de todo o projeto. 

Assim, a exposição funciona também como um escape à correria cotidiana da metrópole paulista e à velocidade das informações nas redes sociais, ao mesmo tempo que provoca reflexões sobre nossa história enquanto país e nossa relação com a temporalidade no dia a dia. 

Para Dária, a exposição é ainda uma forma de a USP, por meio de sua Pró-Reitoria de Cultura e Extensão, apoiar as artes contemporâneas e integrar a universidade pública e a sociedade, convidando diferentes grupos sociais a ocuparem esses espaços e se entregarem a uma experiência que desperta nossos sentidos: “As artes sempre, por si só, nos colocam fora desse tempo cotidiano. Não tem urgência. Algumas pessoas entram apressadas, só para ver do que se trata a exposição, e acabam se perdendo temporalmente lá dentro, se entregam ao tempo da observação, saem da nossa prisão em relação ao relógio”. 

Por isso e pelo fato de que toda exposição temporária é um arranjo único em um dado tempo e espaço, vale a pena visitar a exposição Contar o tempo e se perder, sozinho ou acompanhado, na sobreposição de presente, passado e futuro.