Só em 2023, mais de 5 mil alunos aprovados na melhor universidade da América Latina decidiram não estudar aqui. Dificuldades financeiras, violência e bons “planos B” estão entre as razões
por Diogo Leite e Mavi Faria
Em 2023, a USP abriu 11.147 vagas para a graduação. Considerada pelo World University Rankings a melhor universidade da América Latina, ela atraiu mais de 190 mil inscritos em suas duas modalidades de ingresso: a Fuvest e o recém inaugurado Enem USP. Isso quer dizer que 17,6 candidatos competiram por cada vaga, o que mantém a instituição entre as mais concorridas do país.
Mas parte dos que venceram a difícil barreira do vestibular decidiram não vir. Considerando as listas de segunda e terceira chamada da Fuvest, foram 438 desistências. Frente aos números do Enem USP, esse valor é pequeno: em quatro convocações, foram 4.569 vagas dispensadas por candidatos desta modalidade, que, por não exigir prova específica, atrai vestibulandos de outras regiões do país. Os números mais recentes da Fuvest, de 2022, mostram que os alunos que vêm de longe são os que mais abrem mão da vaga.
O JC ouviu as histórias de quem tomou essa decisão para mostrar os outros fatores que estão por trás do “não”. Dificuldades financeiras, violência, distância e robustos “Planos B” estão entre os elementos que pesam nessa escolha.
“Se eu morasse mais perto, mesmo com a questão financeira…“
1º Lugar em Medicina na USP. Todos os anos, essa frase é ostentada em seletos outdoors, propagandas e posts de redes sociais. Em 2023, quem conquistou o posto foi Maria Clara Santana Lira, 17, estudante de uma escola pública de Cajazeiras, no interior da Paraíba. Ela, no entanto, abre mão de ostentar o título. Quando muito, diz discretamente que “já esperava passar” quando se inscreveu no Enem USP, esperança que era fruto de sua excelente nota no Exame do ano passado.
Maria Clara foi aprovada no curso da Faculdade de Medicina de Pinheiros (FMUSP), na capital, considerado ano após ano o mais concorrido da Universidade. As relações candidato/vaga do Enem USP não foram divulgadas, mas, na Fuvest, em 2023, 118 estudantes competiram por cada cadeira da FMUSP. Hoje, mesmo após vencer essa barreira, Maria é estudante de medicina da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
“Não foi culpa da USP em si”, explica Maria Clara. Para ela, foi a confluência de dois fatores — a distância e as dificuldades financeiras – que a fez desistir da vaga. “Se eu morasse em uma cidade mais próxima, mesmo com a questão financeira, eu poderia continuar visitando minha família. Por outro lado, se a questão financeira estivesse resolvida, eu poderia morar em São Paulo e ainda assim visitá-los.”
A vinda de Maria para São Paulo dependia também da venda de um patrimônio do seu pai, o que não deu certo. Ela conta que foi procurada pela Pró-reitoria de Graduação e pela Profª. Dra. Magda Carneiro, titular da FMUSP, que lhe informaram sobre as políticas de apoio à permanência oferecidas pela Universidade. Segundo Maria, o auxílio seria suficiente para mantê-la na cidade, mas não para que ela pudesse visitar a família, o que, pensando na duração total do curso – de seis anos – ela decidiu considerar na hora de optar pela UFPB.
A inscrição de Maria Clara no sistema de seleção só foi possível graças ao Enem USP. “Caso a USP estivesse no Sisu, eu teria de optar pela UFPB, pois só posso ser aprovada em uma única universidade nesse sistema, e não poderia perder a vaga aqui na Paraíba”, explica. “Infelizmente, eu não consegui realizar este sonho, mas acredito que esse processo abriu portas na vida de muitas pessoas que não acreditavam na sua capacidade de ingressar na USP, mas puderam se inscrever, passaram e foram”.
Mas o sonho dela não acabou: “Ainda espero ir para a USP um dia. Quem sabe uma transferência no meio do curso, uma residência?”
“Fiquei com tanto medo que meu foco passou a ser a ansiedade”
“Eu não pensava tanto nessa dificuldade de ir e vir para a faculdade, mas depois de ver tantos conselhos…”, a situação mudou para Mariles Nascimento, 18. Aprovada pelo Enem USP na terceira chamada para Direito matutino, ela conta ainda emotiva sobre os três dias em que sentiu de alta felicidade a crise de pânico.
Influenciada pela mãe a tentar Direito, optou pelo curso no Enem USP, já que sua primeira opção, Economia, não seria viável por conta da nota mínima exigida em Ciências da Natureza. Mas as coisas mudaram rapidamente. “O processo entre querer ir e desistir durou três dias”, disse
No grupo dos calouros, Mariles se viu cercada de avisos sobre como chegar até à Sanfran (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco), localizada no centro de São Paulo. Para chegar pelo metrô, os estudantes têm três opções: descer pelas estações Anhangabaú, São Bento e Sé, que, segundo o Monitor da Violência do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência), é a 2ª região com mais casos de assalto na cidade.
Apesar das dicas se afunilarem e nada parecer seguro, ela chegou a pensar que a situação não era tão ruim. Mas, nos três dias que envolveram sua decisão, o alerta dos veteranos foi confirmado: um deles foi violentado no caminho da Sé para a Sanfran; um grupo foi perseguido na rua da faculdade e outros dois assaltados na porta, às 13h.
Essa rotina ansiosa e perigosa pode ser comum para paulistanos, mas, para quem está saindo da casa dos pais e do interior, como Mariles, a história é diferente. A vinda para São Paulo representaria uma distância de 720 km de tudo que ela considera familiar, e as preocupações que deveriam ser comuns para quem vem de fora, como onde morar e como sobreviver sem a família, foram ofuscadas pelo pânico e a violência. Afinal, “parecia que tudo girava muito em torno de chegar e sair da faculdade”.
O medo, além de poder evoluir para Mariles não querer mais ir para a aula, tirou dela um sentimento único: a conquista. “Fiquei com tanto medo que meu foco passou a ser mais a ansiedade de como ir e voltar para casa do que estar na melhor Universidade da América Latina”, conta
Apesar disso, ela não se arrepende de ter dito não à USP e escolhido a UnB (Universidade de Brasília), onde se sente mais segura, está mais perto da família e irá cursar a tão sonhada Economia: “Eu fiz a melhor decisão para mim, porque a UnB sempre foi meu sonho. Estava pressionada a vir para a USP, pelo prestígio da Universidade, mas o que eu realmente queria é Economia na Unb”.
“Mesmo com os auxílios, não conseguiria me manter na USP”
Um dos maiores empecilhos na decisão de vir ou não para a USP, a dificuldade financeira, também foi o motivo para José Gabriel Abreu, 17, desistir de se mudar para São Paulo. Ingressante do Enem USP, ele conta ainda sem acreditar como nunca cogitou passar na USP, principalmente no curso em que tanto sonhava: Ciências da Computação.
Mas a linha entre a felicidade da aprovação e o reconhecimento da impossibilidade é tênue, principalmente para quem mora longe. “Eu teria um mês para me programar para ir, arranjar um lugar para morar e me mudar”, isso sem a certeza de que teria ajuda da universidade, com uma vaga no Crusp (Conjunto Residencial da USP) ou com o auxílio moradia concedido pelo PAPFE, que, em 2023, teve sua logística alterada.
O intervalo entre fevereiro e março, que já era curto, ficou ainda menor para tentar tornar realidade o sonho, separado por 2.692 km. De sua cidade natal, em São João do Rio do Peixe, no interior da Paraíba, Gabriel já sabia que as chances para ele eram quase nulas. Apesar disso, ele tentou.
Teve ajuda de veteranos do IME (Instituto de Matemática e Estatística) para solucionar questões burocráticas, mas, mesmo se conseguisse os auxílios da USP, sua condição financeira limitada tornaria quase impossível viver aqui.
Com a realização de que a USP não seria o seu destino atual, ele optou por sua outra aprovação — que menciona sem a devida pompa — em Medicina na UFPB. Apesar de não ser o curso que queria, é uma opção viável financeiramente e uma grande conquista, afinal, Medicina continua sendo o curso mais concorrido do país. Mas a USP não ficou para trás, pelo menos não tanto. Assim como o sonho de cursar Ciências da Computação.
Sem planos muito definidos, ele é esperançoso. “Pode ser que eu goste de medicina no fim das contas”, diz. Mas, se não gostar, Gabriel pensa em fazer o Enem novamente e, se estiver em situações mais favoráveis, finalmente vir para a USP.
“Infelizmente, nenhuma das melhores estava no Brasil”
“Eu queria estudar nas melhores faculdades do mundo e, infelizmente, nenhuma delas estava no Brasil”. Vitor de Camargo, 19, conta isso em uma sala de estudos da Yale University, nos EUA, uma das dez melhores do planeta. Campeão em dezenas de competições nacionais e internacionais de Astronomia, Economia, Matemática e Robótica, Vitor também foi aprovado em Engenharia Aeronáutica na USP, pelo Sisu. Na época, esse curso tinha a maior nota de corte da Universidade: 821,52 pontos, de 1.000 possíveis.
“Desde o Ensino Fundamental, eu sei que quero estudar fora do Brasil. Tinha um menino da minha cidade [São José dos Campos], que foi o primeiro ouro do Brasil na Ipho [Olimpíada Internacional de Física] e passou no MIT [Massachussets Institute of Technology, considerada a melhor universidade do mundo]. Eu lembro de ver a história dele e me inspirar nisso”, conta Vitor. “No Brasil, acho que faltam lugares de referência, desses ‘onde os gênios vão estudar’.”
No Ensino Médio, Vitor mudou de escola e começou a se dedicar a olimpíadas de conhecimento, competições em que acumulou medalhas que ajudaram na sua candidatura para as universidades estrangeiras. Na grande maioria delas, o processo de admissão é “holístico”, considerando diversos aspectos da trajetória do candidato, e não apenas sua nota. Aprovado em cinco grandes universidades nos EUA e Europa, Vitor fez o Enem a pedido da escola, e colocou a USP como opção no Sisu por conta da fama da Universidade aqui no Brasil. Para ele, ela é um dos poucos centros de referência existentes no país.
Ainda no início do curso de Economia e Matemática, Vitor não sabe se voltará ao Brasil. “Posso talvez passar um tempo aí, não sei se para morar definitivamente.”
“Até hoje, entra na USP quem tem dinheiro”
“Mãe, acho que eu passei”, disse Valda Novachi em algum ano da década de 1980. Com a inscrição paga por uma amiga – naquele tempo, se inscrever na Fuvest envolvia comprar uma revista com uma folha de inscrição destacável a ser postada no correio – Valda tinha prestado vestibular para a Escola de Educação Física da USP (EEFE), e acabara de receber os parabéns de uma colega por sua aprovação. Foi correndo contar para a mãe, que respondeu prontamente que não teria dinheiro para bancar a filha em São Paulo (Valda é de Indaiatuba, a cerca de 100 km da capital paulista). Como “naquele tempo não se contrariava mãe”, ela nem olhou a lista de aprovados. Foi cursar magistério e trabalhou mais de 20 anos como professora.
Foi já depois dos 50 anos que, graças ao Prouni, Valda conseguiu fazer faculdade. Aprovada três vezes no Enem, todas entre os 5% melhores colocados, como ela conta com orgulho, cursou nutrição.
Só em 2011 Valda conheceu a USP. Veio pela primeira vez ao campus para trazer seu filho, Dan Novachi, que acabara de ingressar no curso de Relações Internacionais. “Eu até chorei quando deixei ele na porta da USP. Chorei porque eu consegui o que a minha mãe não tinha conseguido.”
Mas, quando perguntada sobre as mudanças que viu no acesso à Universidade desde que foi aprovada, Valda é categórica: “Até hoje, entra na USP quem tem dinheiro. Existem programas sociais, mas a gente sabe que as bolsas nem sempre são suficientes, e as condições do Crusp , por exemplo, são terríveis”. Ela lembra que, em 2011, pagava 1.800 reais de aluguel para o filho (o salário mínimo era, na época, de 540 reais). “Meu filho tinha um amigo que morava em um barracão abandonado do campus.”
Para ela, o que as políticas de apoio à permanência fizeram foi oferecer perspectivas para que quem não tem dinheiro para se manter na USP pelo menos cogite realizar a graduação. “O que mudou é que hoje, mesmo que não tenha dinheiro, a mãe fala ‘vai’.”