JC acompanhou a saída dos moradores que viveram mais de 2 meses debaixo de arquibancadas; confira histórico da questão

Por Camila Sales, Carolina Sena e Julia Ayumi

Estudantes reunidos com bandeiras e cartazes não é uma cena rara na Universidade de São Paulo (USP), mas o que chamava a atenção naquela sexta-feira, 17 de maio, era que entre eles havia um amontoado no chão com mochilas, sacolas de mercado com roupa de cama dentro e até um ventilador. Em volta, cerca de cinco jovens cabisbaixos, tentando jogar conversa fora com poucas palavras. Duas meninas estavam concentradas no celular, esperando algum motorista de aplicativo aceitar a corrida para levar suas coisas até um lar temporário.
Eles estão entre os 57 calouros que, no início do ano letivo, foram instalados em um alojamento provisório do Centro de Práticas Esportivas da USP (Cepe) – localizado embaixo da arquibancada do estádio de futebol do campus da Cidade Universitária –, após um acordo feito com a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (Prip) da instituição. São todos alunos de baixa renda, que vieram de outras cidades ou estados e, inicialmente, não haviam recebido uma vaga no conjunto residencial, o Crusp.
O ingressante de Ciências Sociais Breno Antoniole descreve o processo como caótico. “A maioria, como eu, chegou aqui na cidade alguns dias antes do início das aulas sem saber o que ia acontecer, hospedados na casa de parentes ou veteranos. Pressionamos para que fosse aberto o alojamento e, a contragosto, nos deram inicialmente até o dia 5 de abril para ficar” explicou Breno. Os alunos não saíram.
O grupo foi diminuindo com o passar dos meses, sobretudo a partir do comunicado, emitido em abril, em que a Reitoria estabelecia justamente o dia 17 de maio como ultimato para que todos deixassem o Cepe. A data era uma semana depois dos resultados finais do Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE).
Vinte e seis foram contemplados com uma vaga na moradia estudantil; outros 27 receberam o auxílio integral do programa (R$ 800). Alguns conseguiram custear um lugar para morar; uma parte teve que ficar de favor na casa de amigos.
Os demais estudantes aglomerados na entrada do Cepe, que somavam cerca de três dezenas, estavam ali em apoio aos desalojados. A mobilização foi iniciativa da Associação de Moradores do Crusp, a Amorcrusp, com o intuito de conduzir uma manifestação até a frente da sede da Prip, na rua da Praça do Relógio.
A procissão se estabeleceu ali pressionando por uma reunião com a pró-reitoria, para que alguma providência fosse tomada em auxílio àqueles que continuavam sem onde morar.
“Nenhum estudante hoje vai dormir na rua”
Coletivos do movimento estudantil, alunos solidários, aqueles que haviam morado no Cepe anteriormente e os recém-despejados colaram cartazes no prédio como intervenção visual. O presidente da Amorcrusp ⎯e graduando de Relações Internacionais⎯, Daniel Lustosa, falando no megafone, resumiu: “A Reitoria não quis ouvir as nossas reivindicações, então nós viemos aqui gritá-las.”
Por volta das onze horas da manhã, representantes da Prip concordaram em deixar uma comissão de alunos subir para uma reunião. A proposta deles era que fossem concedidas vagas no Crusp aos desalojados, mesmo que fosse nos quartos provisórios. Ao fim da deliberação, foi acordado que a reivindicação seria levada à Pró-reitora de Inclusão e Pertencimento, Ana Lanna. Porém, ao final do dia, a demanda foi negada.
Em comunicado publicado no mesmo dia, a Prip reitera que, dos 11 estudantes: sete foram contemplados com auxílio integral em abril e já receberam a primeira parcela no dia 20 do mês, um foi contemplado com auxílio integral após pedir recurso e receberá na segunda-feira (20 de maio); e três não foram contemplados pelo PAPFE, pois não se enquadram nos critérios sócio-econômicos.
O órgão considera inadequado conceder os benefícios a estes alunos desconsiderando a posição deles na fila de espera. “Não podemos ser coniventes com a concessão de privilégios, já que os estudantes […] estariam mudando de posição na fila única definida pela pontuação do PAPFE, prejudicando no mínimo 158 outros estudantes que encontram-se também aguardando vagas na moradia e em posição de maior vulnerabilidade social (maior pontuação).”
Novos desdobramentos, velhos problemas
Apesar da proporção que a situação tomou desta vez, em todos os anos é desafiadora a situação de quem chega de longe e não tem base financeira para se estabelecer em São Paulo logo de cara.
O PAPFE dá direito ou à bolsa-permanência de R$ 800 ou à moradia estudantil somada a R$ 300 de auxílio parcial, mas quem precisa do benefício antes do início das aulas precisa realizar a inscrição na primeira leva da seleção, que geralmente começa em janeiro.
Quem ingressa a partir da segunda chamada dos vestibulares, ou mesmo na primeira do Enem-USP, frequentemente já perdeu o prazo e tem que esperar o segundo processo de inscrição abrir. Há também quem se candidata e não é contemplado, mas não consegue arcar com o alto custo de vida de São Paulo. Até para quem consegue a vaga no Crusp antecipadamente, às vezes é preciso aguardar até ser alocado em um dos quartos vagos.
Nesse meio tempo, em anos anteriores, a Universidade excepcionalmente abre alojamentos provisórios dentro do próprio Crusp. Porém, este ano, a medida foi recusada pela Prip, que alegou que os alojamentos provisórios eram apenas para estudantes contemplados pelo PAPFE à espera de um quarto vago. Sendo assim, o movimento estudantil na USP organizou uma série de manifestações para que algum suporte emergencial fosse fornecido.
“Conseguimos que isso aqui [alojamentos do Cepeusp] fosse aberto quase à força, porque era isso ou voltar para casa. Mas só depois de entrar que a gente notou, né? Esse lugar não tem estrutura para hospedar alguém por mais de uma semana, só que já estamos aqui há mais de dois meses e meio”, conta Emily Moreira, caloura de Biologia.
A situação, porém, não é inédita. A Folha de S. Paulo chegou a noticiar um caso similar em 2007, em que, ao final de maio, havia 36 estudantes vivendo no Cepe à espera da vaga no Crusp – o alojamento foi apelidado de “favelão da USP” na época.
Os problemas relatados na matéria da época são os mesmos de hoje em dia: quatro quartos com nove beliches apertadas em cada um, espaço abafado, falta de ventilação e luz solar, proliferação de doenças, poucos chuveiros funcionando e pragas.
Emily ainda pontuou que um dos bebedouros dali não é mais usado depois que uma lagarta foi vista saindo pela bica. A anedota é cômica, mas a estudante explicou que o sentimento de morar em um lugar projetado para no máximo abrigar atletas em campeonatos universitários é de rejeição.
“Boa parte das pessoas que frequentam o Cepe são de classe mais alta, a gente se sente mal de estar aqui de pijama e chinelão no vestiário enquanto chega uma senhorinha para praticar yoga. Reclamam da sujeira, é como se fôssemos parasitas aqui”, diz.
Enquanto isso, as negociações entre os estudantes e a Reitoria a respeito da situação já acumulavam atritos. Breno, de Ciências Sociais, relata que numa reunião do dia 06 de maio, Ana Lanna, a pró-reitora da Prip, alegou que os quartos do Cepe já haviam sido abertos passando por cima da autoridade dela: “Eu prefiro que o alojamento fique vazio”. A conversa foi gravada pelos universitários.
O perfil sócio-econômico dos alunos da USP está mudando, mas a Universidade não tem preparo para receber os novos estudantes de baixa renda.
Breno Antoniole, calouro de Ciências Sociais
Orçamento Bilionário, Apoio Excludente
Ano após ano, a USP tenta demonstrar que está se democratizando e se despindo de seu espírito elitista.“Quando chegamos aqui, as assistentes tiveram um contato muito amigável com a gente. Mas ao longo do tempo a gente foi notando o quanto a política da inclusão não é inclusiva de verdade”, afirma Emily.
Em 2021, o número de alunos ingressantes de escolas públicas ultrapassou a metade da porcentagem total e a crescente seguiu nos anos seguintes, mas cenários como o dos estudantes desalojados revelam que não parece que a USP está preparada para recebê-los.
O Jornal da USP noticiou que o Conselho Universitário aprovou um orçamento para a Universidade da ordem de R$ 8,6 bilhões para o ano de 2024, enquanto a PAPFE, referente aos auxílios pagos, recebe R$ 195 milhões, aproximadamente 2,27% da parcela total do orçamento. O valor total recebido pelo programa de apoio estudantil, considerado o maior do país, é de R$ 399 milhões, somente 4,64% do orçamento total.
O Grêmio da Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design (GFAUD) organizou internamente uma pesquisa entre os próprios discentes para auxiliar aqueles que tiveram suas bolsas suspensas e não foram aceitos para renovar a inscrição no PAPFE, ainda que continuem precisando do auxílio para se manter na Universidade.
A Prip informa que não há suspensão ou cancelamento. O que ocorre, segundo a Pró-Reitoria, é que os candidatos entram em uma nova lista de classificação junto com todos os estudantes – e aí podem não ter obtido pontuação para receber a bolsa.
Segundo os representantes do Grêmio, não houve explicação sobre os critérios usados pelo órgão para a classificação e a constituição da pontuação depois da reformulação do programa em 2023. Em 2024, o limite superior para participar da seleção foi de 1,5 salário mínimo paulista per capita (R$ 1.550). A Prip justifica que os critérios estão em edital e que a pontuação está explícita no questionário socioeconômico.
Além disso, os alunos relataram incongruências nas pontuações, uma vez que não é possível identificar qual é a nota de corte para o recebimento das bolsas, e muitas vezes, uma nota menor que outra garante o auxílio. A Prip diz que isso pode ocorrer porque outras condições de elegibilidade (ter matrícula ativa, por exemplo) não foram cumpridas.

Universidades paulistas “por permanência e moradia”
As políticas de permanência estudantil vem sendo cada vez mais enfaticamente debatidas em todo o ambiente universitário. No dia anterior ao despejo (16), esse foi um dos tópicos de maior destaque durante o ato que acompanhou a reunião do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp).
A manifestação foi organizada pelo Fórum das Seis, aliança que reúne as entidades representativas de trabalhadores, docentes e alunos das três estaduais de São Paulo. A concentração foi feita em frente ao prédio do Inova USP, onde estava o Cruesp.
Estudantes da USP aproveitaram o espaço para chamar atenção para o problema de moradia dos calouros. Também cobraram a conclusão da reforma no Bloco D e a conversão dos blocos K e L, hoje usados pela Reitoria, para fazerem parte do Crusp.