Debate: Anencefalia fetal justifica aborto?

A autorização para o aborto de fetos anencéfalos é um tema polêmico que começou a ser julgado pelo STF (Superior Tribunal Federal) na semana passada. Deputados, associações médicas e entidades religiosas foram ouvidos na terça e na quinta-feira, em Brasília. A última audiência está marcada para 4 de setembro e reunirá representantes da sociedade. O Jornal do Campus convidou dois especialistas, que participaram das discussões no STF, para opinar sobre o tema. Em Brasília, a professora Irvênia Prada representou a Associação Médico-Espírita do Brasil (AME) e o professor Thomaz Gollop falou em nome da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Índice
A busca pela liberdade de decisão – por Thomaz R. Gollop
O “anencéfalo” não é anencéfalo – por Irvênia L.S. Prada


A busca pela liberdade de decisão

por Thomaz R. Gollop

A anencefalia é um erro de fechamento do tubo neural (EFTN) que é definido até a quarta semana do desenvolvimento embrionário. Sua determinação é multifatorial contribuindo fatores genéticos, geográficos, nutricionais e sazonais. A dieta rica ou a suplementação com ácido fólico (4mg) um mês antes e no primeiro mês de gravidez previne cerca de 40% dos casos de EFTN e constitui-se em política pública efetuada pelo SUS. Como a anencefalia é uma das mais comuns anomalias na espécie humana, ocorre em 1:1000 nascidos vivos, a redução à metade de sua ocorrência ainda resultará em um número considerável de casos.

O diagnóstico da anencefalia é 100% seguro através de ultra-sonografia realizada por volta da 11ª semana de gravidez. O Sistema Único de Saúde está perfeitamente aparelhado para realizar este tipo de exame, bastando afirmar que no ano de 2007 foram realizadas 2.526.284 ultra-sonografias. As gestações complicadas por anencefalia representam risco para as grávidas, pois em 50% dos casos ocorre polihidrâmnio(excesso de líquido amniótico), hipertensão materna, distócia de bi-acromial(dificuldade em fazer o parto dos ombros destes bebês que são maiores que o normal), descolamento prematuro de placenta e apresentações anômalas do feto(pélvico ou de face). Atonia uterina e hemorragias pós-parto podem ocorrer exigindo a retirada do útero.

Em 1993 foi emitido o primeiro alvará judicial em São Paulo e, desde então, mais de 5000 alvarás foram emitidos em todo o País. A questão é que estas decisões caso a caso, exigem um laudo psicológico(em SP), um laudo ultra-sonográfico e uma petição que pode ser feita por um advogado dativo. As decisões podem ser rápidas ou podem demorar 15 dias ou mais. Deixe-se claro que cabe a cada mulher decidir livremente se quer ou não manter a gravidez com um feto anencefálico.

Em 2004, a ONG ANIS entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) na qual se considera tortura obrigar uma mulher cujo feto é diagnosticado como anencefálico a manter a gravidez por força da ausência de uma lei que lhe permita a escolha. É importante que as universidades também pensem neste tema, todas elas e a USP em particular!

Thomaz R. Gollop é professor Livre Docente em Genética Médica – USP
retornar ao índice


O “anencéfalo” não é anencéfalo

por Irvênia L.S. Prada

Segundo a Terminologia Anatômica Internacional, o encéfalo compreende o tronco encefálico, o cerebelo, o diencéfalo e os dois hemisférios cerebrais (cérebro). Todo “anencéfalo” que se desenvolve de maneira organizada, com batimentos cardíacos e outras funções viscerais tem preservada, pelo menos, a porção mais profunda do encéfalo, que Wilder Penfield chama de tronco cerebral alto, e que incluiria o diencéfalo e a base dos hemisférios cerebrais. Sustenta os mecanismos neuro-funcionais para respiração, ritmo circadiano de sono/vigília, batimentos cardíacos, peristaltismo gastro-intestinal, controle de temperatura orgânica, controle vaso-motor e de moto-neurônios e “gates” de controle da dor.

Dentro da ciência, vem surgindo tese sobre a existência de uma dimensão “extra-física” – “campos morfogenéticos”, para Rupert Sheldrake e “consciência”, para Amit Goswami (o fundamento do ser).

Para Wilder Penfield, “O indispensável substrato da consciência localiza-se fora do córtex cerebral, provavelmente no diencéfalo (o tronco cerebral alto), porta de entrada e saída da mente… com “uma energia diferente daquela dos potenciais neuronais que percorrem os caminhos axonais”. Mac Lean concorda, ao referir que essa porção “possui mente própria”. Entretanto, “ligações do tronco cerebral alto com o neocórtex pré-frontal e temporal são necessárias para a exteriorização comportamental dos conteúdos da mente” (Penfield), o que explicaria as dificuldades de a criança “anencéfala” expressar-se cognitivamente.

Concluindo, opiniões equivocadas que circulam pela mídia – “é um feto sem cérebro”; “já é um feto morto”; “a mãe carrega em seu útero um cadáver” – não têm, dentro do contexto da ciência, nenhum embasamento técnico. De outra parte, as referências citadas nos dão conta de que o “anencéfalo” tem substrato neural para o desempenho das funções vitais e de ligação com a consciência, o que no meu entender já se constitui em argumento suficiente para se contra-indicar o seu abortamento deliberado e a disponibilização do recém-nascido, para transplante de órgãos.

Irvênia L.S. Prada é professora Titular Emérita (aposentada) FMVZ-USP
retornar ao índice