A greve que atingiu, neste ano, mais de 95% das universidades federais do bRasil levantou diversas questões acerca da atual situação da educação pública do país. Confira a opinião e algumas propostas de dois professores de universidades brasileiras.
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“Há essa tendência de um aumento rápido acarretar na queda da qualidade” – entrevista com Rogério Passos Severo
“A ampliação do número de vagas não pressupõe queda na qualidade” – entrevista com Eduardo Cesar Leão Marques
“Há essa tendência de um aumento rápido acarretar na queda da qualidade”
Rogério Passos Severo é professor adjunto no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria. Fez bacharelado e mestrado em filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e PhD em filosofia na University of Illinois at Chicago. Atua em especial nas áreas de metafísica, epistemologia, filosofia da ciência e filosofia da linguagem.
Jornal do Campus: Você concorda com a greve?
Rogério Passos Severo: Sou totalmente contra a greve.
JC: E quanto às reivindicações dos grevistas, você poderia falar um pouco do motivo para discordar de maiores salários?
RPS: Não sou contra os professores receberem maiores salários, mas usarem a greve para conseguir isso. O ideal seria ter salário bom e parecido com de outros funcionários públicos. Existe distorção no serviço público, atualmente. Não é justo que procuradores e juízes que não têm doutorado ganhem mais do que os professores. A greve, entretanto, não é o meio adequado de se resolver essas distorções.
JC: E em relação à reestruturação dos planos de carreira, você considera justa?
RPS: Eu sou a favor, mas acho que o governo se mostrou desde o início aberto às negociações. Essa é uma reivindicação histórica por parte dos professores e esse ministro se mostrou disposto a negociar isso. O governo mostrou um novo plano de carreira, mas o sindicato dos professores, ANDES, é dirigido por pessoas ligadas ao PSTU e PSOL que quiseram criar um fato político de oposição ao governo Dilma. A greve foi declarada enquanto as negociações estavam em andamento e o princípio básico enquanto negociações estão progredindo é não declarar greve. O governo se mostrava disposto a aumentar o salário, ou seja, atender em parte às demandas da categoria. Havia vários progressos nas negociações, eles precisavam esperar para deliberar a greve.
As greves são instrumentos legítimos de pressão dos trabalhadores, porém só são eficientes quando há alguém que paga, porque o governo, na verdade, é muito pouco prejudicado com isso. Apenas os estudantes e a pesquisa que sofrem as consequências. O que adianta deixar os estudantes sem aula? Qual é o poder que eles têm diante do governo? E, no fim, o prejuízo para pesquisa é imponderável, sendo que não há nenhuma influência sobre o governo. Em vez disso, eles deveriam fazer protesto em Brasília, conscientizar a população, o que a greve não faz.
Outra razão para eu ser contra a greve é que eu acho que os nossos salários não são ruins. A maioria dos professores entra com doutorado, aqui o salário inicial bruto é de aproximadamente oito mil reais, no total, líquido seis mil, o que coloca os professores na classe B brasileira e essa é a minoria da população. Fora que essa situação é boa em nível internacional. O nível de vida permitido por esse salário é o mesmo de um professor americano, a qualidade de vida é mais ou menos a mesma. E é a mesma coisa com os professores europeus, além de muito maior do que nossos vizinhos do Uruguai e Paraguai, por exemplo. A pessoa que vai fazer greve tem que ter um bom motivo, os salários não são ruins, o que existe é uma distorção.
JC: Como você avalia a atual situação da educação brasileira?
RPS: A outra razão para discordar da greve está relacionada a isso. Os sindicatos dizem que o governo não está investindo em pesquisa e educação, mas isso é falso — o governo nunca botou tanto dinheiro em pesquisa. Em 2009 eram disponibilizados 400 milhões de reais para a UFSM, em 2012 foi um bilhão de reais o orçamento anual. E o das outras federais é mais ou menos a mesma coisa. Nesse período ocorreu minha contratação, assim como muitas outras, os departamentos aumentaram, a infraestrutura melhorou, o investimento está aí, é só olhar.
A educação do Brasil é muito ruim, especialmente nos níveis mais básicos. O ensino básico é muito deficiente, o esforço principal dos próximos anos deveria ser de melhorar o ensino básico. Aliás, os alunos chegam com muita deficiência no ensino superior. Nas universidades há um esforço muito grande para melhorar o corpo docente. A avaliação realizada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) teve um efeito benéfico muito grande. Vivemos hoje uma situação de transformação, de mudança, é claro que distorções aqui e ali vão existir, mas não se faz uma greve por causa disso.
JC: O senhor acredita que o sistema que institui 50% de cotas para estudantes do ensino público nas universidades federais é uma medida adequada?
RPS: Eu sou a favor das cotas, porém não sei dizer se essa porcentagem é adequada, não tenho opinião sobre isso. Para a distorção histórica do ensino básico de má qualidade, acho uma boa medida. É emergencial, mas que se precisa ter para resolver. Só não sei dizer qual o índice adequado.
JC: Nos últimos anos, tem-se visto uma busca pela universalização do Ensino Superior, ao mesmo tempo, entretanto, fala-se de queda na qualidade e falta de infraestrutura. Você concorda com essa afirmação? Você vê outra forma de ampliação do Ensino Superior?
RPS: Não sei dizer bem, mas o que eu acho é que sempre que aumenta a quantidade a tendência é cair a qualidade. Os exames que são feitos têm a função de controlar e avaliar exatamente a qualidade das escolas. Como tudo ainda é muito novo, tem havido muitos problemas e para evitá-los são necessários esses mecanismos de avaliação externa. O caminho é esse, acho que não tem muita alternativa. Na pós-graduação também houve nos últimos anos aumento de estudantes e a qualidade também caiu. Mas há casos de grupos de excelência que têm se saído muito bem, que têm inclusive começado a conversar com a comunidade científica, são grupos de pesquisa de ponta. A realidade é muito dinâmica e complexa, as coisas estão acontecendo. Há investimento grande do governo federal e o ensino está mais acessível, são vários aspectos contrastantes e inconstantes.
JC: Você não acha que a melhoria nos salários dos professores pode ser um fator importante para maior valorização da docência e da educação?
RPS: Tem alguns outros países que têm salários bem maiores, como o Japão e a Coreia. Os professores seriam atraídos para essa carreira e viriam pessoas com maior qualificação. A prioridade é, na verdade, aumentar os salários dos professores de ensino básico, que são muito ruins. A profissão deles é muito importante para a formação da cidadania, da cultura etc.
JC: Você acha totalmente inviável, do ponto de vista orçamentário, atender às demandas dessa greve?
RPS: O governo fez proposta e encerrou negociações. A proposta de orçamento será mandada no fim do mês para o Congresso. Os professores vão continuar em greve até o fim do mês, porque não adianta continuar em greve depois de enviada a proposta e ela é boa, não atende a todas as reivindicações, mas atende em parte.
JC: Quais medidas, em sua opinião, deveriam ser tomadas para melhoria da educação brasileira?
RPS: Os salários dos professores do ensino básico devem aumentar drasticamente. A quantidade de dinheiro investido na educação básica deveria quadruplicar. Talvez o governo federal pudesse ajudar os estados a melhorar a educação de escolas de ensino fundamental e médio. O aluno do ensino médio custa aproximadamente dois mil dólares para o estado. Em países com melhores índices de educação, o salário dos professores é equiparável a de juízes e os alunos custam oito mil dólares. O problema não é infraestrutura, é a qualificação e os salários, que no ensino superior também seria bom aumentar, mas não é prioridade.
Outra coisa são os exames de avaliação. Eles devem ser ajustados, há muitas falhas, muitas críticas ainda. As avaliações externas não são aplicadas pela escola ou o professor e são importantes, portanto, para avaliar de fora o que as escolas conquistaram. Porém, isso é algo que leva de 10 a 15 anos.
E outra coisa necessária é melhorar a conciliação entre a técnica e a moral. A educação é uma atividade espiritual, existe a dimensão técnica, mas no fundo é a formação da pessoa, da mentalidade dela, o ensino de valores. E isso tem que ser conquistado, exercitado paralelamente ao ensino técnico, mas nós não temos aqui no Brasil um know-how de como fazer isso. Temos uma crise de valores grande, há uma série de desafios novos, da vida contemporânea, que dizem respeito à medicina, à tecnologia, internet, ecologia, engenharia genética etc. Isso exige de nós uma busca de novas regras de conduta, cultivo de princípios diferentes. Foi feita uma pesquisa uns anos atrás que mostra o desejo da maioria dos jovens de ajudar os outros, para eles a satisfação pessoal e relevância social são aspectos mais importantes no trabalho do que altos salários, a meta profissional principal não é ficar rico ou famoso. Há a preocupação moral das pessoas, mas ela precisa ser mais cultivada na educação, é preciso cultivar a ideia de vida boa, justa e virtuosa. Isso é o mais difícil de fazer e é o que menos atenção recebe. O investimento financeiro e a melhor qualidade devem ser acompanhados pelo cultivo da moral. Essa é a essência da educação, a parte mais difícil de avaliar e medir, mas a mais importante.
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“A ampliação do número de vagas não pressupõe queda na qualidade”
Eduardo Cesar Leão Marques é professor do Departamento de Ciência Política da USP, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole. Pesquisa políticas públicas, tendo publicado sobre políticas públicas, incluindo saúde, habitação e infra-estrutura, e temas relacionados com cidades, como segregação, pobreza urbana, favelas e precariedade habitacional e desigualdades sociais.
Jornal do Campus: O senhor concorda com a greve?
Eduardo Marques: Não posso me posicionar em relação a isso, pois quando não se está envolvido com a situação é difícil avaliar.
JC: E quanto às reivindicações dos grevistas, de maiores salários e reestruturação dos planos de carreira, o senhor as considera justas?
EM: Sim. Há a necessidade de reestruturação dos planos de carreira, porém deve-se estar atento às diferentes propostas. Não concordo com algumas delas por considerarem a promoção automática de acordo com o tempo de trabalho e não por quesitos como produtividade e qualidade. Em relação às propostas do governo, houve melhora entre a primeira e a segunda proposta.
JC: Como esse debate sobre os planos de carreira chega na USP?
EM: Aqui na USP está sendo implantado um novo plano de carreira, o que é positivo. Até então havia menos ‘degraus’, além de aumentos regulares de salário associados ao tempo . O plano atual pressupõe avaliações de mérito baseados em aspectos como produtividade e qualidade para a progressão de nível na carreira dos docentes entre, por exemplo, as categorias Doutor I e II e Associado I, II e III. Como muitos professores requisitaram avaliação, a progressão está sendo avaliada pela Comissão Central de Avaliação para Progressão de Nível na Carreira Docente (CCAD) e, pelo que vi, com critérios muito precisos.
JC: Como você avalia a atual situação da educação brasileira?
EM: A educação pública tem melhorado sensivelmente considerando uma perspectiva histórica desde a democratização. As políticas vêm passando por um importante processo de aprendizado institucional. Restam, contudo, muitos desafios, sendo o maior deles a qualidade do ensino. Expandiu-se a oferta e a cobertura do ensino público, entretanto a qualidade ainda é muito baixa e este é um problema muito difícil de ser resolvido. As soluções são necessariamente federativas e devem incorporar melhora na formação docente que, atualmente, ainda é muito heterogênea, e constitui uma tarefa difícil por ser de grande amplitude. Além disso, principalmente nas escolas básicas, é preciso uma melhor infraestrutura que atenda às mínimas necessidades para o aprendizado. Um grande investimento terá que ser feito para continuarmos melhorando.
JC: O senhor acredita que o sistema que institui 50% de cotas para estudantes do ensino público nas universidades federais uma medida adequada?
EM: A ideia das cotas é importante, mas não acho que a institucionalização das cotas por lei federal seja necessariamente o melhor caminho, pois pode ser colocado em cheque com o argumento de que fere a autonomia universitária. De um modo geral, o sistema de cotas avançou quando os Conselhos Universitários o aprovaram. Mas eu concordo com ações afirmativas como as cotas, pois elas trabalham com a redução de desigualdades, ainda que não consigam democratizar o acesso ao ensino público. O sistema de cotas promove a igualdade de direitos, já que por vezes é preciso tratar desigualmente grupos desiguais para garantir a igualdade. O debate nacional é muitas vezes mal colocado, pois o que se precisa democratizar é o direito ao acesso, e não a estratégia para obter esse direito. Para igualar o direito, o Estado pode lançar mão de estratégias diferentes para grupos desiguais. Mas talvez seja melhor que as estratégias para que isso ocorra sejam localmente definidas, para que haja uma calibragem adequada a cada região e universidade. E quanto às críticas que afirmam que os alunos beneficiados pelas cotas não teriam condições de acompanhar o curso, estudos, como do professor Antônio Sérgio Guimarães, do departamento de Sociologia da USP, e do professor Renato Pedrosa, da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp, mostram que esses alunos chegam até a apresentar índices de aprovação superiores aos dos outros alunos ingressos sem as cotas.
JC: Nos últimos anos, tem-se visto uma busca pela universalização do Ensino Superior, ao mesmo tempo, entretanto, fala-se de queda na qualidade e falta de infraestrutura. O senhor vê outra forma de ampliação do Ensino Superior?
EM: É preciso estar atento que a ampliação do número de vagas não pressupõe queda na qualidade. As condições de acesso e a qualidade têm tido uma melhora significativa. O Programa Universidade para Todos (Prouni) foi uma iniciativa importante, tendo disponibilizado grande quantidade de bolsas e financiamento para estudantes. Além disso, há o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) que promoveu uma expansão de vagas impressionante. Dados da pesquisa do prof. Antônio Sérgio, por exemplo, indicam que na Universidade Federal da Bahia (UFBA) por mais de 40 anos não se via aumento de vagas. Com a instituição do Reuni, as vagas quase dobraram em um período de aproximadamente oito anos.
JC: A melhoria nos salários dos professores é fundamental para maior valorização da docência e da educação?
EM: Sim, a melhoria nos salários é muito importante, porém, se comparados com os salários de professores do ensino básico público, os salários de professores de universidades federais não são baixos. Ainda que importante, o aumento de salário não é fundamental, além de não ser o único fator necessário para boas condições de ensino. Mas é fato que os salários dos professores universitários precisam de uma boa recuperação.
JC: É viável, do ponto de vista orçamentário, atender às demandas dessa greve?
EM: Para entender essa questão é preciso ter em mente que existem várias propostas diferentes referentes às mesmas carreiras, além de várias carreiras em greve em condições muito diferentes. No que diz respeito aos professores, chega-se a diferente valores quando se somam as propostas. Além disso, deve-se considerar que se trata de todo funcionalismo brasileiro e que, entre as diversas carreiras em greve, os professores estão inegavelmente com salários defasados. Deveria haver uma equiparação das carreiras, os técnicos, por exemplo, têm seus salários afixados pelo Ministério de Ciência & Tecnologia, enquanto os docentes pelo Ministério da Educação, seria preciso equiparar as diferentes áreas.
JC: Quais medidas, em sua opinião, deveriam ser tomadas para melhoria da educação brasileira?
EM: Para entender melhor a greve e os problemas do Ensino brasileiro, deve-se separar as coisas que são diferentes. Há a questão do plano de carreira de um lado, e demandas pontuais de outro. Em algumas escolas ou universidades, o problema é de infraestrutura, como é o caso da Federal de Guarulhos, já em outras, como a de Osasco, faltam professores. Em outras federais construídas pelo mesmo Reuni, como a Federal do ABC, esses problemas parecem não estar presentes. Infelizmente, alguns desses problemas pontuais de cada universidade acabaram se confundindo com as reivindicações da greve nas federais, principalmente na imprensa. Há também grandes diferenças Brasil afora, apesar da migração de profissionais entre regiões. Além disso, a tendência é que o sistema vá se especializando, formando polos de desenvolvimento de ponta, profissionalizantes, de serviço, entre outros, a depender das condições e especificidades de cada local.