Pastor, que foi eleito para presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, enfrenta pressão da sociedade civil
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados tem como objetivo, de acordo com seu regimento interno, contribuir para a afirmação dos direitos humanos através da avaliação de casos, discussão de propostas legislativas e fiscalização de programas governamentais referentes a este tema. Ela possui o dever de cuidar e pensar os assuntos referentes às minorias étnicas e sociais do País como um todo.
Tendo isso em vista, não é difícil entender por que a escolha de Marco Feliciano para sua presidência tem gerado tanta polêmica. O Deputado Federal, filiado ao Partido Social Cristão (PSC) e Pastor Presidente da igreja evangélica Assembleia de Deus Catedral do Avivamento, foi eleito no dia 7 de março para ocupar o cargo. Em 2011, ele ficou conhecido por ter publicado em seu Twitter declarações consideradas racistas e homofóbicas com base em dogmas religiosos, que repercutiram nas redes sociais.
A Constituição Federal promulgada em 1988 garante, no artigo 19, a laicidade do país, proibindo que a União, os Estados e os Municípios estabeleçam cultos e alianças com igrejas ou representantes delas. A nomeação de Feliciano tem levantado, assim, reflexões a respeito do “Estado laico” e se, de fato, a Comissão por ele comandada pelo pastor continuará cumprindo seu verdadeiro papel.
Segundo Ferdinando Martins, coordenador do Programa USP Diversidade e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), a discussão sobre a separação de Igreja e Estado na política ainda é recente na sociedade brasileira. “Até pouco tempo o Estado era laico só no papel”, explica. “Isso só se tornou uma mobilização de fato há uma ou duas décadas, muito em decorrência dos movimentos LGBT e feminista, que lidam justamente com as questões da liberdade sexual e do aborto”.
Para Wagner Iglecias, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) , quando representantes de igreja assumem papéis em uma comissão que discute direitos negados às minorias, pode ocorrer um retrocesso em discussões importantes na sociedade. “Num mundo idealizado por alguns setores da população, o casamento deve ser celebrado somente entre um homem e uma mulher. Porém, é fato que homossexuais existem, e eles estão trabalhando, estudando e apresentando suas demandas. O Estado deve dar respostas a elase, por isso, não pode se prender ao discurso dogmático”, declara, completando: “A sociedade pode ter suas diversas religiões, mas na hora de propôr políticas públicas não deve aceitar que elas sejam pautadas por pessoas que defendem valores religiosos”.
As recentes ações de Feliciano como presidente da Comissão vão na contramão disso. Em sua primeira reunião à frente do órgão, o Pastor editou uma nova pauta, alegando que a que havia sido anunciada poucos dias antes não tinha sido escrita por ele. Retirou assim itens que previam discussões sobre projetos polêmicos, como a convocação de um plebiscito sobre a união civil de pessoas do mesmo sexo e a definição de crimes resultantes de discriminação e preconceito de raça, cor, religião e etnia.
Por conta disso, apesar de sua nomeação ter sido legítima, de acordo com as determinações da Câmara, o deputado enfrenta grande pressão da sociedade para renunciar ao cargo. “Quando você vê na presidência da CDHM um homem com posições homofóbicas defendidas publicamente é claro que vai haver uma indignação da sociedade, que espera que uma comissão de direitos humanos combata o racismo e a homofobia. Se um presidente fora desse perfil é legitimamente eleito, a indignação é compreensível”, declara Iglecias. A maior parte dos protestos vêm da própria sociedade civil, de maneira não organizada, que se manifesta principalmente na internet, através das redes sociais.
Discurso de ódio
A defesa utilizada por políticos que não só concordam com a interferência religiosa no preparo de políticas públicas, mas também agridem verbalmente e incitam seus apoiadores ao ataque das minorias, é de que essa postura está de acordo com o princípio de liberdade de expressão. Trata-se, contudo, de uma deturpação do conceito. “Liberdade de expressão não quer dizer que é permitido promover discurso de ódio”, explica Martins. Ele aproveita para fazer uma ressalva quanto à questão da imunidade parlamentar, argumento recorrente no discurso de alguns deputados para justificar declarações polêmicas feitas na televisão ou na internet: “Ainda que seja uma conquista democrática importante, principalmente num país que enfrentou regimes ditatoriais, ela é usada por esses políticos em contextos onde não deveria ser aplicada, fora do exercício da função pública”.
Além disso, a defesa da liberdade de expressão por eles alegada funciona como uma via de mão única. Só é levada em conta quando está a favor de seus interesses. “Eles não apenas querem que valha somente o que estiver de acordo com suas convicções religiosas, como também impedem as outras manifestações, contradizendo o seu próprio discurso”, comenta o professor da ECA.
É ainda com este mesmo argumento que os parlamentares cristãos se opõem ao PL (Projeto de Lei) 122, a “Lei da Homofobia”. O projeto elaborado em 2006, que criminaliza a homofobia no país, ainda nem sequer foi votado devido à forte resistência religiosa. “Eles dizem também que a defesa dos direitos homossexuais já está contemplada na defesa dos direitos humanos e, assim, não há necessidade da lei”, diz o professor. “Mas isso não é verdade. O fato é que, na prática, a punição criminal contemplada pela lei, tal como já ocorre com declarações racistas, é fator crucial para inibir este tipo de atitude”, complementa.
Para o professor, é perceptível uma tendência conservadora na sociedade, por conta dos tempos de crise. Isso é indício de que o debate sobre direitos humanos precisa ser fortalecido. “Temos uma inclinação de achar que cada vez mais as pessoas estão sensíveis aos problemas das minorias. Mas não é bem isso que acontece”, declara. “Às vezes é preciso olhar para além dos discursos que nos rodeiam, feitos por aqueles com quem temos contato diário, para enxergar essa realidade”, conclui Ferdinando Martins.