Universidade pública deve oferecer cursos pagos?

Cursos de extensão que cobram mensalidade geram discussões sobre até que ponto a universidade é verdadeiramente pública

Ilustração: Mariane Roccelo

Há anos, os cursos pagos de pós-graduação lato sensu na USP são uma realidade. Criados por professores da Universidade, eles atendem profissionais de diversas instituições de ensino, públicas e privadas, e oferecem especialização e MBA com “certificado USP”, diferente da pós-graduação stricto sensu, que é gratuita e concede títulos de mestre e doutor. Entre as entidades mais conhecidas que disponibilizam esse tipo de formação estão a Fundação Vanzolini, ligada à Escola Politécnica, e a Fundace Business School, gerida por docentes da Faculdade de Economia e Administração de Ribeirão Preto (FEA-RP). Ambas, em seus sites, enfatizam a conexão com a Universidade de São Paulo.

De acordo com o professor Márcio Mattos, diretor de projetos da Fundace, esse convênio é profundo, uma vez que “todo o controle acadêmico e financeiro é feito pela USP. O credenciamento de professores depende de suas competências e licenças concedidas pela própria Universidade para este fim”. O acordo prevê cessão de espaço para realização dos cursos e um percentual à USP.

As opiniões sobre o assunto são divergentes. Mattos apresenta seus argumentos a favor da prática, assim como o presidente da Associação dos Docentes da USP (Adusp), Ciro Correia, e um dos diretores do Diretório Central dos Estudantes (DCE), Camilo Martin, explicam por que são contrários a essa atividade.

Contradição?

Ciro Correia: Se a USP é mantida por recursos públicos, não há razão para ceder seu espaço a eventos privados, especialmente cursos pagos. Trata-se de uma grave distorção, na medida em que fere tanto a Constituição Federal quanto a Constituição Estadual. A cobrança de taxa de matrícula nas universidades públicas viola o disposto no artigo 206, IV, da Constituição Federal.

Camilo Martin: A universidade pública é, e deve continuar sendo, financiada pelo dinheiro público, por isso tanto o seu espaço físico quanto o desenvolvimento de suas atividades devem ser referenciados nos interesses e necessidades do conjunto da população que a financia e não como espaço de geração de lucro da iniciativa privada.

Márcio Mattos: Na realidade, os cursos não são privados mas sim atividades de extensão da USP, regulamentadas pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão. O público alvo são profissionais do mercado que se interessam em aperfeiçoar seus conhecimentos.

Deficiência no ensino público

CC: Ao contrário do que argumentam os defensores dos cursos pagos, tais atividades não se prestam a “atender demandas da sociedade”, mas sim a criar demandas cuja finalidade social nem sempre é muito clara. A finalidade principal de tais cursos é gerar renda adicional para os seus organizadores. Isso explica que tenha surgido, na USP, uma verdadeira indústria de cursos pagos, em prejuízo do caráter público da universidade.

MM: São dois modelos de cursos diferentes. O mestrado e doutorado tradicionais, stricto sensu, formam pesquisadores e professores universitários. A FEARP, dependendo da disponibilidade de orientadores, disponibiliza em torno de 80 vagas/ano de forma gratuita nesta modalidade. Já os cursos de especialização, lato sensu, são voltados a capacitar profissionais para o mercado de trabalho.

CM: Há uma deficiência de vagas nos cursos públicos, mas a saída não é a ampliação de cursos privados. Se os governos priorizassem a educação seria possível oferecer cursos gratuitos e de qualidade para todos.

Salário

MM: Não há salário, mas sim uma remuneração eventual quando o docente ministra alguma disciplina. Por norma da USP, a dedicação a essas disciplinas é limitada a 36 horas por semestre. De fato, acaba acontecendo o contrário: professores que dão aulas nos cursos de especialização acabam sendo os mais produtivos academicamente, pois precisam ter bom desempenho neste quesito para conseguirem uma licença da CERT–USP para poderem exercer estas atividades.

CC: Há diversos relatos de estudantes que se queixam da desatenção de docentes envolvidos em atividades remuneradas. Tem sido reportado o fato de que tais docentes revelam abertamente que suas aulas nos cursos regulares são meras adaptações das aulas preparadas para os cursos privados. Esses pequenos grupos de professores que se envolvem em atividades remuneradas, nas fundações privadas ou organizações similares, tendem a deixar de lutar por salários melhores e por outras reivindicações do conjunto da categoria. A relação com o “mercado” passa a ditar sua trajetória acadêmica, tanto no que diz respeito à docência quanto à pesquisa, pois esta passa a depender dos interesses de financiadores públicos externos à universidade (empresas estatais e governos) e privados.

CM: Há uma política dos cursos pagos de cooptar os professores, pagando altos salários, ao mesmo tempo em que as condições de trabalho nas universidades públicas em geral, e na USP em específico, deixam a desejar. O ideal é que os professores tenham condições dignas de trabalho, com infraestrutura adequada, carga horária que contemple tempo para pesquisa, extensão e ensino e, principalmente, salário satisfatório para não sentirem a necessidade de procurar por estas condições em outras fontes.

Consequências

MM: A formação de profissionais mais preparados para o mercado é função da Universidade Pública. Os recursos que advêm desta atividade são destinados na sua maior parcela a própria Unidade. Estes recursos servem para auxiliar na produção científica, na concessão de bolsas para alunos dos cursos de graduação gratuitos da USP, para reformas e investimentos em infraestrutura da FEARP. Além disto, o projeto do curso prevê o oferecimento de 10% de vagas gratuitas para funcionários da USP e similares se aperfeiçoarem. Muitos funcionários e docentes da USP fazem estes cursos de especialização.

CC: Têm sido frequentes os casos de disciplinas que desaparecem dos cursos regulares, surgindo depois na forma de um curso pago. Muitos dos professores envolvidos, passam a dar menor atenção às atividades acadêmicas regulares, públicas, deixando até de orientar seus alunos. O envolvimento de alguns docentes em atividades lucrativas, gera um ambiente deletério, desvirtuando uma instituição que deveria ser totalmente voltada para o ensino público, gratuito e de qualidade socialmente referenciada.

CM: O curso pago faz avançar a elitização da universidade pública, uma vez que fica restrito aqueles que podem pagar. Limita o alcance da produção acadêmica, que fica submetida ao interesse do empresário que possui o curso e  ataca a qualidade dos cursos gratuitos, utilizando do tempo dos professores e da estrutura da universidade. Em última instância, o avanço dos cursos privados expressa um processo de privatização da universidade, atacando seu caráter público.