Com a proximidade do Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro, o Jornal do Campus entrevistou Jupiara Castro, uma das fundadoras do Núcleo de Consciência Negra da USP e funcionária da Faculdade de Medicina (FMUSP). Ela comenta sobre o papel do negro na sociedade, as dificuldades da inserção no ensino superior de qualidade e a importância fundamental da imprensa na conquista da igualdade racial.
O que a população negra tem a comemorar no próximo 20 de novembro, dentro e fora da Universidade?
O 20 de novembro é uma data que nós comemoramos devido a um herói brasileiro que fez uma resistência pela libertação das condições subumanas que vivia uma parcela da sociedade brasileira – não éramos nem considerados parte da sociedade – e que foi relegado ao esquecimento.
A resistência, a luta pelos direitos civis, o ser tratado com igualdade e dignidade, esta luta devemos comemorar e até hoje continuamos fazendo.
Não somos ainda considerados iguais, não somos tratados como iguais e continuamos uma luta para estarmos inseridos na sociedade brasileira como sujeitos da história e não objetos. Na universidade, não objetos de estudo, mas como sujeitos que podemos falar sobre a nossa história, nosso passado, e construir nosso presente.
O 20 de novembro é uma data-símbolo que temos a comemorar porque, aos poucos, a gente tem avançado na construção da cidadania do povo negro no Brasil.
Como você avalia a participação e presença da população negra dentro da Universidade?
Nós estamos presentes na universidade. Todo o mundo tem o hábito de dizer que estamos ausentes, mas não. Hoje, estamos mais presentes por causa de toda essa disputa que temos feito aqui na USP desde 1990, com a nossa postura firme de relançar a necessidade da inclusão do negro na educação brasileira – o que terminou culminando na Lei 10639 [lei federal de 2003 que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas públicas da educação básica], nas cotas pra negros, no estatuto da igualdade racial. Esta luta nasce aqui no núcleo por “Reparações Já”.
Quando lançamos esse projeto de “Reparações Já”, que tinha esse arcabouço de direitos de serem alcançados pela população negra, a gente deu um salto de qualidade.
A Universidade de São Paulo é uma das universidades mais elitistas de todo o país e, quiçá, do mundo. Eles pensam nessa instituição, que é sustentada com o dinheiro do povo, para formar filhos das elites. Como nós não somos filhos das elites, nós estamos sós.
Quase que no país todo, nós temos a reserva de vagas para negros e carentes, na USP essa discussão não é admitida. Até iniciam um arremedo de discussão, pra dizer que se tem algum projeto, mas são arremedos de políticas compensatórias que não compensam nada.
Hoje, dentro do ensino, nós somos um número um pouco melhor, mas ainda muito deficitário, muito aquém das necessidades. Se você olha o nosso corpo docente, hoje você já conta com alguns negros. Em 1988, nós tínhamos só 5 docentes na USP. Hoje, esse número deve ter dobrado. Há docentes altamente qualificados pra acessar o cargo de docente da USP.
Por essa universidade ser muito elitista e ser pensada, no seu estatuto de fundação, como uma universidade para formar filhos das elites, você tem fora dos bancos da Universidade a parcela de negros que caberia pra poder se qualificar e ser colaboradora na diversidade étnica-cultural do pensar a educação no país e de pensar o país através da educação.
Por que sente que os negros não são tratados de forma igualitária?
É uma longa trajetória. Se eu me sentisse igual com mais outros negros, nós não teríamos a necessidade de construir o NCN. No momento em que você é levado a construir uma entidade que busque os direitos civis dessa população de que eu faço parte é porque as coisas não vão bem e têm que mudar.
Quais são as atividades desenvolvidas no NCN?
Nós temos duas turmas de cursinho pré-vestibular, o curso de idiomas (com inglês, francês, português para estrangeiros, espanhol e swahili [língua africana]) para a população carente de São Paulo. Fazemos diversos cursos, como o do professor Henrique Cunha Junior, sobre história da África, faremos um curso na terceira semana de dezembro sobre a lei 10639, que institui o ensino da história da África nas escolas púbicas.
Nesses mais de 25 anos de história, quais foram as maiores conquistas do NCN?
Acho que a luta que foi feita em conjunto. A reserva de vagas nas universidades, o reconhecimento de que o Brasil não é uma democracia racial, mas um país racial que ainda perpetua o racismo dentro dos diversos quadros de poder. Outra conquista que começa a ser discutida é a reserva de vagas para negros em concursos públicos.
Outra vitória importante foi a lei 10639, mas temos que ter cuidado para formar recursos humanos para dar essas aulas. A unidade que conseguimos no movimento negro, preocupado com a questão dos direitos civis e humanos, para colocar esse debate na sociedade foi também uma vitória.
Mas toda ação tem uma reação. Hoje podemos ver um avanço brutal dos setores conservadores vindo para cima do movimento dos negros no país e pode-se ver que aumentaram muito as agressões de grupos de direita, e também a parte policial do Estado pelo extermínio da população negra. Se por um lado você avança em conquistas, por outro lado setores conservadores e do Estado avançam na repressão e na busca do extermínio.
A Anistia Internacional lançou a campanha Jovem Negro Vivo, no último domingo, aqui no Brasil. Segundo pesquisas, “dos 56 mil homicídios que ocorrem por ano, mais da metade são entre os jovens. E dos que morrem, 77% são negros”. Por que essa agenda política não entra nas discussões dos candidatos eleitorais e por que eles não tomam uma posição?
A gente tem que começar pela mídia, que é um dos principais inimigos da população negra. Basta ligar qualquer canal de TV para ver o pedido de redução da maioridade penal. Esta redução está direcionada pra encarcerar a juventude negra.
Já tivemos partidos chamados progressistas, que tinham um programa social que fazia tal debate. O maior partido, que hoje não sei se chamo de esquerda, ou social-democrata, está na direção do país. Mas há falta de firmeza ideológica pra defender um projeto e demonstrar que esse país há falta de perspectiva pra juventude.
Como esse partido, que era tido como da ética, não enfrentou esse debate de forma aberta com a sociedade, as pessoas perderam parte do programa de repensar uma sociedade justa e igualitária. Perdemos esse espaço no debate.
Temos os partidos pequenos, com pouco espaço de mídia, que fazem essa discussão.
Então, não estamos discutindo a redução da maioridade penal para a juventude, mas a redução da maioridade para o encarceramento da população negra. Além de matar de forma livre, eles também podem agora encarcerar da pior forma possível a juventude negra.
O NCN é a favor da política de cotas para ingresso no ensino superior?
Não somos apenas a favor, mas fomos os proponentes. Sempre defendemos a melhora no ensino fundamental e médio e o aumento do percentual do repasse da educação para o ensino fundamental, médio e superior.
Temos um exército de jovens que terminaram o segundo grau sem nenhuma perspectiva de ingresso no ensino superior. Há uns 10 ou 15 anos atrás, diziam que colocar essa juventude nas universidades, sem preparo, era diminuir a qualidade das universidades. Mas está comprovado que essa juventude, quando entra pelo sistema de cotas, segundo estudos da UERJ, UnB e UFBA, foi a população que menos evadiu, que tinha notas iguais ou superiores aos não-cotistas. Eram alunos que tinham um único problema: não tinham como se manter na escola porque passavam fome.
Estamos já com duas ou três turmas de negros já formados, e que continuam a vida acadêmica.
A questão da meritocracia é posta muitas vezes como mais um filtro, e não um facilitador. Como avalia o conceito de “mérito”?
Já dizia Aristóteles que você só pode discutir mérito entre iguais. A meritocracia não serve para escolher os melhores, é uma teoria furada da USP.
Precisa-se assumir que nós, que vivemos com dinheiro de negros, retirantes, brancos e amarelos através de impostos, estamos dizendo que os negros servem para pagar a universidade, mas não para estudar na universidade.
A USP tem que entender que é pública e tem que servir ao público, abrir para os outros saberes e outras culturas, para a sociedade que vive mais ou menos junta.
A proposta de transformar a USP numa universidade paga já se transformou em programa de governo eleitoral. Isso afetaria de que forma a população negra?
Essa é uma forma de a elite brecar nossa entrada na universidade. Esse programa demonstra o quanto as administrações das universidades estaduais paulistas não têm nenhum compromisso com um projeto de país mais avançado.
Pra você ver o quanto é perverso: há muitos professores saindo daqui e indo pra Harvard, Princeton e para Universidade de Nova York. Eles vão com cotas pra latinos. Isso, pra eles, serve. Mas as cotas pros negros na universidade não servem. Além de acessarem um benefício, eles querem que isso se mantenha num círculo muito fechado. Não conseguem enxergar que a desgraça que se vive neste país também se dá pela total desigualdade deste país.
Denúncias contra casos de racismo, como a do goleiro Aranha, não demonstram maior conscientização do povo brasileiro em relação à igualdade racial?
Avançamos um pouco em algumas questões, como a questão estética. Hoje é aceitável ter o cabelo “carapinha” [ou crespo], não preciso mais gastar uma fortuna com isso. Discussões sobre o biotipo hoje ganham simpatia, mas logo somem.
Quando falamos de questões mais estruturais, como o acesso ao ensino superior, as pessoas não se solidarizam, mas dizem que nós queremos privilégios.
por JOÃO PAULO FREIRE