Heterofobia e ditadura gay não existem

Discursos desconsideram a dimensão social e histórica do preconceito e reiteram a intolerância
Criminalização da homofobia é apenas uma das demandas de grupos que lutam contra o preconceito e a intolerância (Foto: Fora do Eixo)
Criminalização da homofobia é apenas uma das demandas de grupos que lutam contra o preconceito e a intolerância (Foto: Fora do Eixo)

Diante da condenação do ex-candidato à presidência, Levy Fidelix, por falas homofóbicas durante a campanha, ouviu-se diversas reações, dentre as quais a opinião de que vivemos tempos de “ditadura gay”. Essa tônica vai na mesma direção da fala de grupos e pessoas que dizem sofrer com a “heterofobia”, ou seja, o preconceito “inverso” devido à sua orientação sexual hétero. Estas falas muitas vezes surgem em um contexto de oposição a iniciativas que procuram garantir direitos civis aos homossexuais e outras minorias. Mas me parece importante esclarecer a intolerância velada nestes discursos.
Talvez muitos de nós, conscientes ou não, confundamos preconceito com ofensa. E, de fato, muitas formas de ofensa e desrespeito, que diminuem, menosprezam ou depreciam o outro, por qualquer razão, alimentam a intolerância e podem levar ao ódio e ao preconceito. Por isso, devem ser combatidas. Porém, a homofobia vai além. Ela não se resume a uma ofensa, pura e simples. Os discursos e as ações que rejeitam, desrespeitam, estigmatizam e excluem os homossexuais reiteram práticas sociais desumanizantes e enraizadas historicamente.
Assim, é difícil falar em “heterofobia” ou em preconceito inverso. Se a sexualidade hétero não fosse tomada como norma dentro de uma sociedade e, por qualquer razão, se tornasse alvo de desprezo, hostilidade, violência, discriminação e ódio ao longo da história, isso seria possível. Se o seu modo de ser fosse perseguido, condenado e ainda hoje isso reverberasse na nossa sociedade de formas múltiplas, então poderíamos falar em heterofobia. Mas isso não acontece. Um heterossexual, por causa da sua orientação, não será oprimido pelo sistema excludente que levou os homossexuais e outros grupos minoritários a uma história de luta contra o preconceito e em favor de seus direitos.
Mas o problema não está apenas aí, ou seja, na discussão sobre a existência ou a impossibilidade da heterofobia. O ponto talvez seja que se alguém desloca o tema do preconceito e vitimiza os grupos majoritários, alegando viver em uma “ditadura gay”, falando de uma inversão de papéis ou reduzindo a discriminação à esfera do insulto, esvazia a profundidade do problema, negando-o. Isso porque a discriminação tem a ver com a construção e a manutenção de relações de poder e domínio. Ao tomar para si a figura de marginalizados, representantes dos grupos hegemônicos, na realidade, trabalham para deslegitimar as lutas contra o preconceito, enraizado e reiterado ao longo dos séculos.
Ideias como heterofobia e ditadura gay demonstram desconhecimento do tema do preconceito e intolerância. Além disso, colocam em evidência as distorções de uma sociedade em que o dominador se apropria das lutas do dominado, não para cooperar na busca por igualdade de direitos e erradicação da exclusão, mas para negar suas demandas, esvaziando-as de sentido. Discursos heterossexistas, ao desprezarem as raízes sociais e históricas que desenharam a exclusão, trabalham em prol do próprio preconceito, e jamais do desenvolvimento de uma mentalidade consciente e de transformação da realidade.

por QUÉFREN DE MOURA