USP cogita Enem para acesso à graduação

A forma de entrada abrangeria 15% dos ingressos e se prestaria a alunos de escolas públicas

Shinsuke Kira, 20 anos, morador de Rio Grande da Serra, estado de São Paulo, acorda todos os dias às 4h45 da manhã. Sai de casa às 5h e pega trem e metrô para chegar à capital a tempo das aulas do cursinho, que começam pontualmente às 7h05. Shinsuke estuda no Etapa Ana Rosa com bolsa integral e já passou por outros dois preparatórios nos últimos anos, sempre contemplado pelo benefício na mensalidade.

Foi ajudando os colegas da ETEC Alberto Santos Dumont a sanar dificuldades de aprendizado que o estudante da região metropolitana de São Paulo descobriu sua vontade de exercer a Medicina. Tendo sido aluno da rede pública por toda a sua vida, não foi até a chegada no cursinho que percebeu suas defasagens no conteúdo escolar: “Todos os meus colegas de sala eram de escolas particulares. O nível deles era, sem dúvida, superior ao meu”, explica.

Para este e mais milhões de alunos é que está em vias de aprovação, na Universidade de São Paulo, uma medida que reserva 15% das vagas anualmente abertas para estudantes de escolas públicas com ingresso via Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A medida afirmativa é mais um passo na direção da meta da USP, que é de ter, em sua composição de alunos, 50% deles provenientes da rede pública até 2018 — no último ano, 35,1% dos ingressantes se encaixavam neste perfil. Segundo a pró-reitoria de Graduação, a proposta conta com amplo apoio da comunidade acadêmica e deve ser apresentada ao Conselho Universitário (CO) para aprovação até junho, podendo estar em vigor já no próximo vestibular, ao fim deste ano.

Já existe, na Universidade, o Inclusp — o programa consiste em medidas de bonificação que podem chegar até 20% de acréscimo na nota de alunos de escolas públicas e 25% para estes alunos que forem negros ou indígenas. Foi com o bônus que Shinsuke conseguiu passar para a segunda fase da Fuvest nos últimos dois anos: “Fiz 62 pontos [na primeira fase]. Com o Inclusp, fui para 72. Passei na primeira fase pra Medicina, mas não fui aprovado”, e desabafa: “Se eu não tivesse esses bônus, eu nunca iria passar ou sequer ter alguma esperança”. Douglas Rocha Constancio, professor de Sala de Leitura e História da Diretoria Regional de Ensino de São Mateus, também fala sobre a importância dos mecanismos de inclusão para o aluno da rede pública: “A criação dos bônus e cotas é um primeiro passo para encorajar o aluno da periferia, para que ele também almeje a universidade”.

A escolha do Enem é bem-vinda para Shinsuke, já que a prova “se aproxima mais da função social da escola”, apontando como exemplo as redações do exame, que sempre buscam questionamentos civis. Ainda segundo ele, há maior proximidade com o projeto da escola pública, que não forma “um aluno robô que resolve provas, mas prioriza a formação social do aluno, quer que ele saia de lá formado como um cidadão melhor”. Constancio concorda e ressalta a principal diferença que vê entre os colégios particulares e públicos — enquanto os primeiros podem focar no conhecimento técnico voltado ao vestibular, os últimos precisam lidar com outras adversidades. Acrescenta, ainda, que as provas estão mais exigentes e que muitos dos alunos das escolas públicas precisam estudar e trabalhar simultaneamente, o que acarreta que “eles não tenham dedicação exclusiva”.

Shinsuke não deixa de fora o recorte que diferencia as ETECs das escolas públicas estaduais de nível médio, que são maioria no país: “[Nas escolas públicas estaduais] o ensino é muito defasado. A expectativa de continuidade nos estudos não é prioridade”, aponta. De acordo com ele, ainda há diferenças na administração de ambos os modelos — enquanto as estaduais regulares são regidas pela Secretaria da Educação, as ETECs são dirigidas pela autarquia Centro Paula Souza, que é controlada pela Secretaria de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia. Além disso, as últimas ainda requerem a participação em um processo seletivo para ingresso, chamado informalmente de ‘vestibulinho’, que visa selecionar os melhores alunos sob a ótica conteudista. O vestibulando avalia as chances do aluno da ETEC de conseguir uma vaga em um curso superior mais concorrido, como Medicina ou Engenharia, como “muito difícil, e a da escola estadual comum é bem menor”. Segundo Constancio, “até então, cabiam aos estudantes de escolas públicas os cursos de licenciatura ou de baixa remuneração no mercado de trabalho.”

O professor fala da necessidade de derrubar o mito que alunos cotistas podem ter desempenho pior do que a média e, consequentemente, degenerar o nível de qualidade das universidades públicas: “Alunos cotistas são dedicados, inteligentes, disciplinados. Desistem menos porque não podem se dar ao luxo de perder uma oportunidade.”

A notícia da possibilidade de reserva de 15% das vagas na USP pegou Shinsuke de surpresa: “Fico feliz em saber que mais pessoas poderão cursar uma das melhores faculdades do Brasil”, declarou, após ressaltar a importância de qualquer forma de inclusão. Ele ainda chamou a atenção para outro ponto da medida que democratiza o ingresso na Universidade: “A inscrição da Fuvest é muito cara. Alunos que não conseguem pagar muitas inscrições e alunos de outros estados vão ser beneficiados”. Quando questionado se pretende se inscrever no programa caso ele seja aprovado para o vestibular 2015, Shinsuke encerra a entrevista dizendo: “Pretendo, sim! USP é USP!”

(Infográfico: Stella Bonici)
Ingresso Negro

De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do total de inscritos no Enem 2014, 57,91% eram autodeclarados negros. Ao mesmo passo, negros ou pardos são 56,4% nas escolas públicas do país, segundo o Censo Escolar 2005.

Para Pamela Camarano, estudante de Turismo da Universidade de São Paulo e negra, a medida pode ser benéfica para o grupo racial “se considerarmos que está reservado um espaço a um grupo no qual negros são maioria”, esclarece, sem deixar de mencionar que dificilmente a medida será tão eficaz quanto o sistema de cotas. Isso porque, segundo a estudante, ainda que as chances sejam maiores de haver um negro selecionado dentro da porcentagem (15%) de vagas destinadas à escola pública do que fora, ainda não se reserva a ele espaço e visibilidade próprios da desigualdade histórica de que sofrem. “Beneficia, mas não isenta da necessidade de um programa onde os negros e seu histórico de opressão sejam o foco e que almeje igualar seu espaço com o da população branca”, finaliza.

Por Marcela Campos