Reflexos da Casa Grande e Senzala nos aproximam de uma liberdade orwelliana em nome da segurança
Catracas, cercas, câmeras, polícia, muros, equipes de segurança privadas. São várias as formas que a sociedade encontra para tentar se sentir mais segura. Dentro dos muros da USP a ânsia por segurança costumeiramente entra em choque com o caráter público da universidade. No último dia 15, o Instituto de Geociências começou a receber catracas e entrou no grupo das faculdades da USP que restringem de alguma forma o acesso do público que não faz parte da comunidade universitária a seus prédios, que conta também com a Faculdade de Odontologia (FO), o Instituto de Astronomia e Geofísica (IAG), o Instituto Oceanográfico (IO), entre outros. O desejo por segurança é legítimo, mas passa a ser prejudicial quando é exacerbado e tantos outros direitos são cerceados em nome dele.
Na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), por exemplo, apesar de um plebiscito realizado na unidade em 2012 ter mostrado que 71,9% de quem a frequenta ser contra a instalação de catracas, esta discussão se arrasta até hoje, inclusive com obras já acontecendo na portaria do prédio principal. As catracas só não foram instaladas na época por causa do alto custo de implementação: R$ 1,2 milhão. Quando até as decisões democráticas são relativizadas em nome do aumento da segurança definitivamente há algo de errado. “A catraca é o símbolo de um país muito atrasado”, já dizia Lúcio Gregori, ex-secretário de transportes da gestão da prefeita Luiza Erundina e idealizador do projeto de Tarifa Zero nos ônibus da cidade. Ainda mais em espaços que se pretendem públicos, como as universidades ou o transporte, por exemplo, as catracas demarcam que o público não é de todos, mas sim destinado a alguns privilegiados. Seja porque passou no vestibular, ou por ter R$ 3,50 para se locomover pela cidade. A segurança surge como um pretexto muito convincente para, em uma sociedade tão desigual como a brasileira, “colocar cada um no seu lugar”. É a história da Casa Grande e a Senzala, como já escreveu Gilberto Freyre. O passado escravagista brasileiro ainda não foi extirpado, e infelizmente está longe de ser. O anseio pela segurança também tem seu desmembramento para a política. Proliferam a cada eleição coronéis, capitães e outras figuras pitorescas que se aproveitam do medo da população – inflamado por apresentadores de TV sensacionalistas – para fazer sua carreira na política institucional e aplicar uma “agenda do atraso” ao país. Pedem redução da maioridade penal e já chegaram até a dizer literalmente que “bandido tem que ir para o saco”, como já fez o hoje deputado estadual Coronel Telhada, por exemplo. Quem deveria discutir leis prega a barbárie. Tudo em nome da segurança. A presença de câmeras de vigilância a cada esquina, que também proliferam dentro da universidade, é também um sinal da “liberdade vigiada” em que vivemos. Abandonamos nossas liberdades individuais, com nossos passos acompanhados por diversos olhos, quase como em uma distopia de George Orwell, em nome de nos sentirmos mais seguros.
Mas segurança não é importante?
É óbvio que o problema da segurança é real. E que é preciso medidas concretas para garanti-la. É preciso apostar em outra visão, na promoção da convivência entre as pessoas, na melhor ocupação de espaços como uma das frentes para combater a insegurança. Uma sociedade que ergue muros, cercas, coloca catracas, restringe o acesso, obviamente terá fobia do espaço público, deixando-o mais vulnerável. Medidas como melhor iluminação ou criação de espaços de convívio são importantes para tentar buscar segurança através da ampliação de direitos e não na sua restrição. Por outro lado, é possível abrir mão de uma só vez de todas as medidas de segurança “convencionais”? Parece-me claro que não. Em sociedades com desigualdade social acentuada, a violência sempre estará presente. Imaginar, por exemplo, que é possível prescindir de uma força de segurança de uma hora para outra me parece utópico. É preciso discutir desde já a desmilitarização e a humanização da atuação da Polícia Militar, que serve muito mais como instrumento de repressão do que de promoção de segurança. Segundo os dados oficiais da Corregedoria da PM, a polícia matou 801 pessoas no estado de São Paulo só em 2014. São mais de duas pessoas por dia apenas na contagem oficial. Isso não é normal e não pode continuar. É a violação oficial de direitos em nome da segurança, mais uma vez. Mas a garantia da segurança também é necessária e urgente no dia-a-dia, portanto abrir mão de uma força de segurança oficial seria a troca de uma barbárie por outra. Um processo de transição parece ser o mais sensato. Com equipes de segurança que passem a respeitar mais os direitos básicos dos cidadãos, como inclusive foi proposto por Ana Lúcia Pastore, a antiga chefe da segurança da USP que ficou no cargo por apenas nove meses. Com a promoção da convivência ao invés da extensão da vigilância, esta discussão precisa estar tanto dentro como fora da universidade – principalmente do lado de fora.
Por: Murilo Carnelosso