“Não é possível que haja uma pessoa só num esquema desses”

O ex-reitor João Grandino Rodas concede entrevista exclusiva ao Jornal do Campus
Foto: Jessica Bernardo
Foto: Jessica Bernardo

“Assuma a reitoria, assuma e não faça nada. Limite-se pura e simplesmente a deixar as coisas correrem. Faça sua representação pessoal, faça viagens de estudo, que são legais. Porque, assim, você não terá problema.” Em tom irônico, João Grandino Rodas afirma que esse é o conselho que gostaria de ter ouvido na véspera de iniciar seu mandato como reitor da USP, cargo que ocupou de 2010 a 2013.

Formado em Direito, Letras, Economia, Educação e Música, o ex-reitor recebeu o Jornal do Campus no Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES), do qual é fundador e presidente. Em outubro, a atual reitoria abriu um processo interno contra Rodas, alegando “lesão aos cofres públicos”. Embora confesse não ter sido surpreendido, ele condena a decisão. Com o argumento de que a atual gestão esteve presente durante as decisões de seu mandato, ele questiona: “por que aceitaram?”.

JC – Muitos o classificam como um reitor “centralizador”, que se isolou em seu cargo. De que maneira o isolamento pode ter prejudicado o seu mandato?

Rodas – Primeiramente, eu tinha reuniões programadas com os pró-reitores, superintendentes e vice-reitor. Todos eles tinham uma agenda regular comigo. Nós tínhamos, antes da congregação, uma reunião com umas 15 pessoas e todo mundo falava. Uma coisa que fizemos foi a Gestão de Integração de Dirigentes (GeInDi) – nos reuníamos todo mês, com todos os diretores de todas as Unidades: eram mais de 100 pessoas, que discutiam os problemas. A última dessas reuniões aconteceu em junho de 2013 e foi o maior sucesso, com uma publicação com o que a gestão fez, com tudo o que cada pró-reitor fez. Veja, nunca fiz nada sozinho. Durante os quatro anos, realizei almoços com praticamente todas as Unidades e departamentos. Só eu e eles. Será que eu amarrei a boca de todos? Não quero criticar a gestão dos outros, mas ele [Marco Antonio Zago] já chegou falando “ah, a USP está quebrada”. Não houve isolamento. Minha gestão pode ter tido outros defeitos, mas não esse.

Como era o seu relacionamento com os estudantes da USP?

Com toda a sinceridade: nós temos 80 mil estudantes. Respeito que cada um pense de um jeito, só não acho que está certo quando você parte para quebrar coisas – fazer o que é tipificado como crime. O reitor tem até a obrigação legal de tomar uma atitude, porque, em última análise, a responsabilidade é minha. Após ter sido segundo colocado na lista tríplice e ter sido escolhido reitor, o que um grupo falava era que eu não iria tomar posse. Esses grupos querem marcar a posição deles. Veja, vi propaganda do PSTU falando do reitor da USP. De certa forma, a turma preparou isso, junto com o sindicato, porque essa é a função deles.

Havia diálogo como senhor?

Muitas vezes, sim. Mas aqueles bem radicais mesmo nem iam conversar comigo na reitoria, que estava aberta. Muitos alunos foram lá, mas os radicalíssimos acham que vão perder ponto com os colegas se entrarem na reitoria. Acho que isso explica um pouco esse tom. Também tem a questão que culminou com o desligamento de alunos da USP depois de processo administrativo por fatos graves [em 2011, seis alunos foram expulsos após ocuparem a Coseas em protesto por mais vagas de moradia estudantil]. Veja bem, não ponho esse desligamento sobre mim. Tive 100% das assinaturas dos presentes – todos os diretores e todo o corpo administrativo – em reunião. Inclusive, com a assinatura do atual reitor, do atual vice-reitor e de todos que continuam lá. Você pode mudar de ideia, mas tem que ter vergonha na cara. Não faz sentido assinar e não lembrar disso depois. Em relação a várias questões, como correções salariais e benefícios, todos estavam lá. Em quatro anos, ninguém disse nada. Ora, se essas questões são tão absurdas na visão deles, a ponto de ser base de um processo administrativo, por que aceitaram? É uma grande hipocrisia, principalmente porque eles estavam lá, não se pode empurrar para uma pessoa só. Não é possível que haja uma pessoa só num esquema desses.

A atual reitoria afirma que herdou uma Universidade que “gastava muito mais do que arrecadava”. Um processo interno foi aberto contra o senhor, sob a alegação de “lesão aos cofres públicos”. Como o senhor recebeu isso?

Existe aquela questão do messianismo: “Eu cheguei, nós vamos começar a USP, nós vamos refundar a USP”. Ninguém refunda nada. Você continua as coisas que os outros fizeram. Não se pode descobrir o fogo novamente, descobrir a roda.

Por que a USP possui reservas financeiras? Qual é a origem des-se dinheiro?

Na hora que você diz que a USP está falida, que gastaram demais e exageradamente, você pergunta: “exagerado no quê?”. Se a Universidade não tem infraestrutura, não pode fazer pesquisa. E, se você tem R$ 2,5 bilhões, vai deixar tudo lá? Isso até é crime. Eu, como reitor, posso ser processado por não ter usado o dinheiro. Aquele dinheiro do ICMS não é para estocar, é para gastar. As reservas vieram das reitorias anteriores. Quando o ICMS aumenta, sobra mais dinheiro. Quando diminui, sobra menos. E, mesmo sobrando, nunca o gasto com pessoal foi menor do que 80%, 90%, porque é um peso grande. O dinheiro também sobra pela impossibilidade de gastar. Pode fazer projetos, mas sempre sobra. Nunca ninguém disse que gastei alguma coisa em benefício próprio ou de terceiros. A atual reitoria nega ter participado de tudo e diz que gastei demais. Mas universidade não é banco. É claro que você precisa ter uma certa reserva para problemas como esse.

O senhor tomou decisões individuais quanto aos pagamentos de servidores técnico-administrativos? Isso resultou no desequilíbrio das contas da USP?

É impossível se tomar decisão individual na Universidade. A aprovação em relação à carreira dos técnicos servidores só não teve 100% devido às abstenções de dois representantes do sindicato, que se abstiveram por posição ideológica. Ninguém pode negar que o funcionalismo tem grande importância na Universidade, hoje muito mais. Se não há funcionários capacitados e decentemente pagos, não é possível que a Universidade funcione, que os laboratórios funcionem. O fato de não haver carreira antes fazia com que cada mês de maio fosse uma luta, pois o funcionário sabia que ou ele teria aumento ali, ou não teria mais. Por causa da falta de carreira, o reitor antes dava um ajuste pressionado depois de uma greve – o que não é aceitável em uma universidade. A partir daí, nós estabelecíamos uma quantia para fazer a progressão. Não tem nenhum pagamento na USP que não passe pela Comissão de Gestão de Recursos, que tem mandato, e pela Comissão de Orçamento e Patrimônio, que tem mandato, além da Comissão de Assuntos Acadêmicos. Todas são eleitas pelo Conselho Universitário. Além disso, você tinha, na parte da estrutura financeira, o vice-reitor executivo de administração. Abaixo de tudo isso, havia diretores. Se eu estivesse os forçando, só se fosse por coerção, e, para isso, haveria evidências. Como você vai coagir toda essa gente? Na época, ninguém falou nada.

Há uma solução para a crise financeira enfrentada pela Universidade?

É um momento crítico para as universidades. No mundo todo, as universidades andam extremamente preocupadas em melhorar seus rankings e suas pesquisas. Se é para ter um curso de Música na USP, ele deve ser dos melhores, não adianta ser em piano desdentado. Ou você tem algo que seja bom ou você fecha. A primeira coisa que a USP precisava fazer era o que as outras duas – Unesp e Unicamp – estão fazendo, que é resolver seus problemas e não fazer terror. As pessoas estão amedrontadas. Essa questão do processo não é para mim, é para amedrontar todo mundo: “Se eles estão fazendo isso contra o Rodas, imagina contra mim?”. A primeira coisa que precisava ter era um clima amistoso e confiável. O que foi feito de bom para a Universidade nesses dois anos da gestão do Zago?

O ex-reitor Rodas recebeu o Jornal do Campus no CEDES (Centro de Estudos de Direito Econômico e Social), nos Jardins. (foto: Jessica Bernardo)
O ex-reitor Rodas recebeu o Jornal do Campus no CEDES (Centro de Estudos de Direito Econômico e Social), nos Jardins. (Foto: Jessica Bernardo)

Em maio de 2012, a USP comprou o navio oceanográfico Alpha Crucis por R$ 11 milhões e custo de manutenção de R$ 250 mil. Hoje em dia, o navio está encostado no Porto de Santos, sem utilidade, mas com gastos mensais ainda existentes. Por que comprar o navio?

A USP já tinha um navio oceanográfico, que é o fundamento para você ter o curso de Oceanografia, e tinha cerca de 25 anos. Era um navio pesqueiro norueguês que havia sido transformado em oceanográfico. Quando era reitor, ele estava parado e no fim do ciclo de vida. Havia R$ 2 milhões no orçamento para corrigir o navio, o que era absolutamente insuficiente. O dinheiro veio da Fapesp, de um projeto que o Instituto Oceanográfico apresentou. Eu fui junto, afinal não é fácil solicitar R$ 11 milhões à Fapesp. O navio nunca ficou parado em minha gestão. Mas você vai deixar o navio apodrecer só para dizer que foi o outro quem comprou o negócio?

A gestão atual se encontra estagnada?

Não digo estagnada, digo o seguinte: nunca vi tamanho autoritarismo [como o] da atual gestão. Sinceramente, nunca vi.

Muitos falam a respeito da abertura dos escritórios internacionais…

Isso não custou um tostão. Esses escritórios foram provisórios e deram bastante visibilidade. E foi “custo zero”, porque isso não foi feito pela USP, mas sim pelo Santander Universidades. Nós só apresentamos o projeto para eles.

Em 2012 a USP ficou em primeiro lugar no ranking das maiores universidades da América Latina. Não foi só o trabalho que fizemos, mas demos um impulso. Agora perdemos a América Latina para uma universidade pequena, do Chile. Na minha gestão, desbancamos a UNAM [Universidade Nacional Autônoma do México], que era a primeira colocada. Agora a USP perde para uma universidade que não era forte. Quando fui visitar a universidade no Chile, vi que é tudo pequeno perto das dimensões da USP. Mas lá é tudo arrumadinho. A gente [da USP], não. A gente briga entre si. Claro que sempre vai haver diversidade de ideias, mas nunca vi uma casa tão dividida como eu vejo hoje. Isso é uma guerra interna, sem tréguas. Você pensa que eu estou falando mal do Zago, mas quem vai lembrar de Zago daqui a dois anos? Ninguém. Da USP, sim. Por que colocar professor contra funcionário, ao falar: “ah, funcionário ganha mais do que professor?”. Houve uma declaração dele de que “professor é mais importante”. Isso é discriminação. Ambos são importantes. Quem faz a Universidade são os professores, os funcionários e os alunos.

Se o senhor pudesse voltar no tempo e dar um conselho para si mesmo na véspera de assumir a reitoria, qual seria?

Posso ser irônico? Eu diria: “Assuma a diretoria, assuma e não faça nada. Limite-se pura e simplesmente a deixar as coisas correrem. Faça sua representação pessoal, faça viagens de estudo, que são legais. Porque assim você não terá nenhum problema.” Isso é irônico, mas tem um fundo de verdade.

O senhor se arrepende de alguma coisa da sua gestão?

Não me arrependo. Primeiro: houve honestidade durante a gestão. Eu imaginava uma gestão coletiva, e ela foi. Foi uma gestão que incluiu as pessoas de todas as cores políticas dentro da reitoria. Foi de realizações, por muito que se queira dizer que a construção foi errada. Minha gestão não foi um período de estagnação. Não há uma decisão da qual eu me arrependi do tipo “isso eu não faria mais”. A Universidade e a Faculdade de Direito ainda verão muitas coisas que nossa gestão fez.

Até que ponto a sua gestão não foi transparente?

A USP é uma grande burocracia, uma das maiores do Brasil. Em relação à questão da transparência, nunca há um limite ótimo. Essa ideia de uma transparência cada vez maior é recente. Se você falasse sobre transparência há 25 anos, a turma iria dizer que isso não tinha lógica nenhuma. Dizer que não houve transparência entre 2010 e 2013 não é verdade.

De alguma forma, o senhor esperava que fossem abrir um processo interno contra o senhor?

Não vou dizer que me surpreendi, porque quem vive um tempo razoável não se surpreende com mais nada, mas realmente não havia motivos e razões para se pensar dessa forma. Nem que o reitor atual tomasse uma postura dessa, de ódio pessoal. Não se pode dizer que ele só soube de toda a situação após o resultado.

Por que o senhor acredita que existe “ódio pessoal” de Zago?

Ao final do meu mandato, estavam todos achando que tinha sido um sucesso. Zago, naquela época, me procurou e pediu o meu apoio. Ele me disse textualmente: “se você me apoiar, serei o mais forte defensor da sua gestão”. Eu não o apoiei, justificando oficialmente minha atitude pelo fato de que o Zago iria fazer 70 anos antes de terminar o mandato. Ele vai ser meu maior defensor? Ele vai me defender do quê? Ninguém está sendo condenado, ninguém está sendo acusado. Enfim, ele realmente cumpriu sua palavra. Como eu não o apoiei, ele está cumprindo a promessa ao contrário.

Por Vinícius Andrade