Conservadores querem acabar com cursos de humanidades

Por Rodrigo Brucoli

Extinção dos cursos de humanas no ensino superior e reforma do ensino médio são golpes no conhecimento crítico

(Arte: Caio Vinícius Bonifácio)

Apoiador do candidato Jair Bolsonaro, Thiago Turetti é autor da ideia legislativa Extinção dos cursos de humanas nas universidades públicas. A ideia não foi aprovada mas, caso fosse, poderia impactar diretamente no ensino básico, visto que grande parte desses cursos são de licenciatura.

Partindo da proposta de Turetti, especialistas da área, como Elba Barreto, Maria Isabel de Almeida, Bebel Noronha e Renato Janine Ribeiro discutem os atuais rumos da educação básica no Brasil.

 

 

As ideias legislativas

Em abril deste ano, Thiago Turetti propôs a ideia legislativa  Extinção dos cursos de humanas nas universidades públicas. Ideia legislativa é uma proposta de nova lei, ou de alteração de alguma lei, que pode ser feita por qualquer cidadão no portal E-Cidadania. Caso a ideia receba mais de 20.000 apoios, ela é encaminhada para a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa para ser debatida pelos senadores.
Na ideia, Turetti argumenta que não é adequado usar dinheiro público para esses cursos quando o Brasil tem forte carência em “cursos de linha”, como Medicina, Direito e Engenharia. Assim, propõe que os cursos de História, Geografia, Filosofia, Sociologia, Artes e Artes Cênicas sejam realizados exclusivamente em universidades particulares. A proposta, cuja votação está encerrada, recebeu 7.385 apoios.

Apesar do grande número de apoios, a ideia de Turetti também recebeu forte reação contrária. Poucos dias após ter sido aberta a votação, Acsa da Costa Silva propôs a ideia legislativa Permanência dos cursos de humanas nas universidades públicas. Para ela, cursar uma universidade pública ou privada deve ser uma escolha do cidadão. “O país precisa de mais acesso igualitário à educação em todos os níveis de ensino”, e, como grande parte da população é de baixa renda, diminuir o número de vagas do ensino superior público restringiria o acesso dessa parcela da população, explica. Até o fechamento da matéria, sua ideia contou com 53.780 apoios.

Embora atinja diretamente o campo da educação, a discussão iniciada por Turetti está muito além disso: ela evidencia o contexto de polarização e radicalização política que tem em Jair Bolsonaro seu principal ícone. Segundo o Datafolha, com ausência de Lula o candidato lidera a corrida presidencial, obtendo 19% das intenções de votos.

Escola sem Partido

Thiago Turetti, administrador da página Jair Bolsonaro Presidente 2018, é um ativista das ideias do candidato. Já propôs diversas ideias legislativas, entre elas Proibição de ensinamento de ideologia de gêneros nas escolas e Revogação da lei de cotas raciais, essa última com apenas um apoio. Ao mesmo tempo que se alinham às propostas de Bolsonaro, suas ideias se aproximam de outros políticos da dita “nova direita”, como o vereador Fernando Holiday, para quem as cotas incentivam o racismo.

Em entrevista, Turetti afirmou que os cursos de humanas das universidades públicas “formam militantes partidários, que destroem o patrimônio público. Não é porque eu gostaria de cursar ‘astrologia’ que o dinheiro do contribuinte deve pagar isso. Prefiro financiar algo que traga real retorno à sociedade.”

O autor da ideia legislativa entende que ela pode melhorar o ensino, pois as ciências humanas “são inexistentes em instituições públicas. O que há são cursos voltados à doutrinação marxista, transformando as universidades em uma ‘fábrica de extremistas’ e usuários de drogas. Instituições privadas, ao contrário, prezam pelo profissionalismo e imparcialidade em seus conteúdos”.

Miguel Nagib, coordenador da associação Escola sem Partido (ESP) afirmou que essa ideia legislativa não se relaciona às propostas do ESP. Embora afirme ainda não ter opinião formada sobre o tema, declarou que, pessoalmente, tem simpatia pelo projeto. Citou o caso do Japão que, por recomendação do ministro da educação, fechou diversos departamentos de humanas de universidades públicas.

Em nota, a assessoria de imprensa de Fernando Holiday declarou que o vereador cursa Direito, que também é um curso de humanas. “Esse tipo de propositura nunca fui defendida por ele ou pelo MBL (Movimento Brasil Livre), que ele coordena nacionalmente. Quanto ao Escola Sem Partido, o projeto não trata dessa questão e tem um propósito completamente distinto”.

(Arte: Caio Vinícius Bonifácio)

“Reformas” nas políticas educacionais

A reação de Elba Barreto, professora da Faculdade de Educação da USP (FE-USP) e Superintendente de Educação e Pesquisa da Fundação Carlos Chagas é categórica: “é triste ouvir essas bobagens. Uma formação universitária tem que incluir todos os campos do saber. Isso são fantasias radicalizadas no pensamento conservador, polarizado. Acho que nem é para dar tanta ênfase na mídia, porque você está difundindo uma coisa que é um absurdo. Precisa dar espaço na imprensa para uma coisa dessas?”

Para a professora Maria Isabel de Almeida, da FE-USP, asfixiar as discussões das ciências humanas não é algo novo no país. Maria Isabel relembra que, no período da ditadura civil-militar, História e Geografia foram extintas da 5a à 8a série do 1o grau (atual 6o ao 9o ano do ensino fundamental II). A formação de professores passou a ser feita nas curtas licenciaturas em Estudos Sociais, com duração de um ano e meio.

“A escola e a universidade eram vistas como espaços onde rondava o perigo”, explica. O empenho dos setores governistas nessa área “se explica pelo fato de que é no ensino das humanidades que se concentram, majoritariamente, as possibilidades de compreensão e crítica a respeito da dinâmica da nossa sociedade”. Nesse sentido, a reforma do ensino médio é alarmante, pois “elimina possibilidades de constituição de uma perspectiva formadora crítica”.

“É no ensino das humanidades que se concentram, majoritariamente, as possibilidades de compreensão e crítica a respeito da dinâmica da nossa sociedade”

Maria Isabel de Almeida

Apesar de a reforma do ensino médio também afetar diretamente as disciplinas de humanas, Maria Isabel Almeida entende que atualmente o cenário é distinto: “vivemos uma conjuntura neoliberal, em que as maneiras de organização capitalista requerem formas de controle social para viabilizar a extinção de direitos, privatização e combate às formas organizativas de setores profissionais ou sociais”. Assim, as atuais propostas na área da educação precisam ser analisadas “à luz do processo reformista que busca a criação de uma nova ordem social neoliberal extremamente desfavorável aos setores sociais menos privilegiados”.

Nesse sentido, a ideia legislativa de Turetti, o Escola sem Partido, propostas de formação de professores em cursos a distância e a reforma do ensino médio não podem ser vistas de forma desarticulada, pois fazem parte de um projeto de educação e de país que está em curso. “Essas reformas também estão em sintonia com o congelamento dos recursos educacionais por 20 anos”, analisa.

Reforma do ensino médio

Maria Izabel Noronha, a Bebel Noronha, que se afastou da presidência da APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) para concorrer às próximas eleições, também entende a ideia legislativa de Turetti como uma ameaça à educação. “A motivação é clara: privatizar ainda mais o ensino superior no Brasil e retirar das universidades públicas cursos que formam profissionais pensantes, com autonomia intelectual para compreender a realidade nacional e formular propostas para a sua transformação, capazes de formar cidadãos e cidadãs que possam também compreender e transformar a sociedade, seja em nível profissional, seja no exercício da cidadania”.

Bebel Noronha explica que “a proposta concretizada no projeto de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é de realizar 40% do currículo a distância, por meio de grupos privados, e até 100% da Educação de Jovens e Adultos”, o que endossaria o projeto de privatização do ensino público. Argumenta ainda que “a BNCC e a antirreforma do ensino médio estão centradas no desenvolvimento de ‘competências’, e não na formação integral do estudante”, o que pode retirar da escola o papel de formar cidadãos.

A reforma do ensino médio pretende transformar a educação pública em uma espécie de ‘fábrica’ de pessoas que tenderão a reproduzir a ideologia dominante, perpetuando, sem questionamento, o esquema de poder vigente“.

Bebel Noronha

Assim como a professora Maria Isabel Almeida, Bebel Noronha entende que a proposta de Turetti, o Escola sem Partido e a reforma do ensino médio estão profundamente relacionados. Para ela, essas propostas fazem parte de “um projeto de sociedade e de educação que retira direitos da maioria e visa manter os privilégios de uma minoria”, porque, diferente do ensino público, o ensino privado poderá manter currículos que atendam aos seus projetos educacionais. Assim, a reforma do ensino médio “pretende transformar a educação pública em uma espécie de ‘fábrica’ de pessoas que tenderão a reproduzir a ideologia dominante, perpetuando, sem questionamento, o esquema de poder vigente.

“Educar é abrir para o mundo”

No início deste mês, o professor de Filosofia da USP, Renato Janine Ribeiro, lançou A pátria educadora em colapso. No livro, o ex-ministro da educação faz uma retrospectiva dos seus seis meses à frente do ministério, contando bastidores do governo e convidando o leitor a refletir sobre a educação no Brasil.

Em entrevista, Renato Janine explicou que a palavra educar vem de dois termos latinos: ex, que indica um movimento de dentro para fora, e ducere, que significa levar, conduzir. “Educar, então, é levar de dentro para fora, é fazer sair do mundo fechado, a família, a religião, a aldeia, o bairro, o clã, a profissão. Educar é abrir para o mundo”.

“Educar, então, é levar de dentro para fora, é fazer sair do mundo fechado, a família, a religião, a aldeia, o bairro, o clã, a profissão. Educar é abrir para o mundo”.

Renato Janine Ribeiro

O problema, de acordo com o ex-ministro, é que o sentido libertador da educação deixa as parcelas conservadoras da sociedade temerosas. Por isso, a construção de “uma agenda empenhada em evitar o poder libertador da educação”.

Renato Janine discorda de que o argumento da escassez de recursos possa ser utilizado para fechar cursos necessários à formação da pessoa. “A ideia legislativa fala de cientistas. É errado, porque não se está pensando em cientistas. Estão pensando em pessoas que têm uma formação apenas instrumental, mas sem discutir os fins das ações delas. Um bom cientista vai saber que tem a mudança climática, vai procurar na ação dele reduzir esse impacto. Não dá para separar o instrumento dos fins”.

O bom cientista, portanto, lida com valores humanos, e não apenas com a sua área técnica. Não basta a um agrônomo, por exemplo, tornar a produção de alimentos mais rentável se, com isso, pode causar danos à qualidade do ar e da terra. O bom cientista não pode trabalhar exclusivamente com o desenvolvimento econômico e técnico de sua área, pois, de acordo com Janine, “a economia de hoje pode ser uma besteira gigantesca a médio e longo prazo”. Além de profissionais, a escola deve formar cidadão e indivíduos.

Educar para formar cidadãos

Em seu livro, Renato Janine explica que “ao contrário do que ainda hoje se faz”, é essencial que o ensino médio proporcione ao jovem uma formação suficiente para entrar na vida adulta como profissional e como sujeito de direitos civis. “Eu diria, correndo o risco do paradoxo: o jovem precisa ter completado sua abertura ao mundo. Ou, se quisermos, ter completado sua incompletude. Ser adulto é ser incompleto. É saber que não se sabe tudo – e, por isso mesmo, saber procurar o que lhe interessa, o de que precisa – e muitas vezes que ainda não sabe o que lhe interessa.”

No sentido de educar para a vida, a educação ainda tem muito a caminhar. Em entrevista, o ex-ministro explicou a importância de rever as ementas dos cursos do ensino médio tendo como referência a formação do cidadão, e não do profissional. Para ele, atualmente esses cursos são uma espécie de trailer da graduação a que correspondem, reunindo, de maneira concisa, os conteúdos do ensino superior. Entretanto, o objetivo do ensino médio é outro, não é formar profissionais das áreas, mas apresentar de que maneira cada uma das matérias pode preparar o aluno para o mundo.

“Você termina o ensino médio em torno de 18 anos, pode contratar compra, venda, aluguel, até casamento. Pode firmar contratos que representam individuamento pela vida toda. E alguma vez esse jovem de 18 anos recebeu uma aula sobre o que é contrato? O que é casamento? Os cuidados que deve haver nisso tudo? Não”.

“Você termina o ensino médio em torno de 18 anos, pode contratar compra, venda, aluguel, até casamento. Pode firmar contratos que representam individuamento pela vida toda. E alguma vez esse jovem de 18 anos recebeu uma aula sobre o que é contrato? O que é casamento? Os cuidados que deve haver nisso tudo? Não.”

Renato Janine Ribeiro

Os cursos de humanas poderiam ter papel fundamental nesse preparo. Filosofia, por exemplo, caso fosse focada no aluno, e não só na história da filosofia, poderia ensinar política, “explicando o que é liberalismo, socialismo, democracia, ditadura, direita, esquerda, sem nenhum espírito de doutrinação, mas de empoderamento do jovem para ele poder fazer as suas escolhas, que não serão nem as dos pais, nem as dos professores”.

Sociologia poderia estudar “como se dá a produção no capitalismo, que é extraordinário do ponto de vista técnico para gerar riqueza, mas tem problemas humanos e ambientais grandes, que só podem ser resolvidos com forte militância social, trabalhista e ambiental, para evitar o seu lado predatório. A economia ensina a produção da riqueza, mas vivemos em sociedades que produzem pobreza também. Não se pode culpar tão somente o pobre pela pobreza. Deve-se entender qual a construção social que leva, como no Brasil, a uma desigualdade social muito grande”.

Ter um ensino focado no aprendizado dos alunos e não nas disciplinas poderia torná-los mais cidadãos, mais capacitados a compreender os cadernos de cotidiano dos jornais, compreendendo a complexidade da produção de riqueza e pobreza, temas fundamentais não só a cursos de sociologia, mas também a todo cidadão.

Educar para formar indivíduos

Em seu livro, Renato Janine discute que o ensino básico não tem a missão de apenas formar o profissional, mas de formar a pessoa, “alguém que discutirá seu lugar no mundo, que aprenderá a fazer a sintonia fina de seus sentimentos. Formação é o que fica depois que a pessoa tiver esquecido a maior parte dos teoremas, das teorias, dos livros”. Nesse sentido, além da História, Geografia e Sociologia, a Literatura e as Artes também possuem um papel fundamental, pois permitem ao indivíduo o conhecimento de suas próprias emoções.

Em entrevista, o autor afirmou a importância dos livros, textos e filmes que podem ajudar na educação sentimental da pessoa. “A descoberta do amor, da paixão, de suas complexidades, de como tudo isso mexe fundo com as pessoas. Isso melhora o ser humano, não é uma coisa focada apenas numa formação profissional de quem vai fazer Letras depois”.

“A descoberta do amor, da paixão, de suas complexidades, de como tudo isso mexe fundo com as pessoas. Isso melhora o ser humano, não é uma coisa focada apenas numa formação profissional de quem vai fazer Letras depois”

Renato Janine Ribeiro

A Antropologia, que muitas vezes fica de fora do conteúdo escolar, também possui papel fundamental, por ensinar sua lição primordial de que não há cultura superior às outras, embora exista uma tendência dos povos a acreditarem que sua cultura é superior às demais. Além disso, por meio dela poderá se conhecer mais a respeito dos indígenas e “à medida que soubermos mais sobre eles e suas realizações, falar deles se tornará uma obrigação moral e científica no ensino médio”, explica Janine em seu livro.

O fundamental para essa transformação da educação proposta pelo ex-ministro é que o enfoque saia das disciplinas e dos programas de seus cursos no ensino superior e recaia no aluno e seus processos de construção como indivíduo e como cidadão. As humanas, nesse sentido, têm papel primordial. Para isso, entretanto, os cursos do ensino básico devem deixar de ter como foco a pergunta “quais são os principais conteúdos para uma formação específica nessa área?”, passando a ter como referência a questão “o que é fundamental para alguém saber viver?”

Para Renato Janine, os cursos do ensino básico devem “empolgar, enriquecer os alunos fazendo-os ver melhor o mundo. Penso que esse é um desafio para todos”.