João Antônio: o ilustre desconhecido de Presidente Altino

Aclamado pela crítica e reconhecido internacionalmente, o escritor e jornalista João Antônio ainda é um um estranho. Na infância, ele morou nos arredores da USP

Imagem: reprodução/arquivo pessoal

 

Por Igor Soares

“No Morro da Geada, depois da várzea de Presidente Altino, venta bravo nas noites e, nas madrugadas de muita friagem, no Morro costuma gear. (…)As mantas feias e ralas de flanela cinza rampeira, compradas barato na feira dos domingos do Jaguaré, não impedem a umidade que vara as paredes dos barracos feitos de caixotes vazios de sabão e bacalhau” – Trecho do livro de contos ‘Abraçado ao meu rancor’

Morro da Geada, Presidente Altino e Jaguaré. Foi circulando entre esses pontos da zona Oeste de São Paulo que o escritor e jornalista João Antônio Ferreira Filho, ou apenas João Antônio, viveu a infância e encontrou inspiração para muitas obras. Mesmo após ter mudando para o Rio de Janeiro, sempre retornou ao bairro para visitas aos familiares, que hoje não moram mais na região.

Assim como Mozart, João nasceu em um 27 de janeiro, só que bem mais tarde que o renomado compositor austríaco. em 1937. Mesmo ano em que a quarta Constituição brasileira foi outorgada por Getúlio Vargas e três anos após a fundação da Universidade de São Paulo.

Nascido em São Paulo, viveu a infância na região pobre ao redor da USP, onde ainda hoje, apesar das mudanças, as marcas da pobreza persistem.

Filho de um português com uma brasileira, João Antônio cresceu em meio a precariedade do Morro da Geada, abrigo de muitas famílias vindas dos mais diversos cantos do país (e do mundo) para ganhar a vida enas fábricas da região de Presidente Altino. Isso ainda antes da metade do século passado.

Na época, o bairro industrial tinha como principal polo de trabalho o Frigorífico Wilson, local onde os pais do futuro escritor e jornalista se conheceram. “Sobre o meu nome se poderão ouvir as melhores e as piores coisas. Jamais acreditem. (…) Apenas boa gente que fala demais.”

Aos 26 anos de idade publica seu primeiro livro:Malagueta, Perus e Bacanaço. Conjunto de oito contos e uma novela, o texto principal que intitula o livro retrata a vida de três amigos no mundo da malandragem, tendo como cenário tradicionais bairros da zona Oeste, como Água Branca, Barra Funda e Pinheiros.

Com uma linguagem que foge dos padrões estilísticos tradicionais e abusa de elementos da oralidade, o livro foi sucesso de crítica e vendas, rendendo inúmeros prêmios para o jovem escritor, entre os quais os prêmios Fábio Prado e Jabuti, este último nas categorias “Revelação” e “Melhor livro de contos”. Em 1977 a obra foi adaptada para o cinema pelo cineasta Maurice Capovilla e deu origem ao filme O Jogo da Vida.

Mais interessante que a obra é a história de sua concepção. Após terminar de escrever o livro, a casa onde João Antônio morava com a família em Presidente Altino foi destruída por um incêndio, fazendo com que o jovem perdesse todos registros e anotações. Diante disso, João passou os dois anos seguintes reescrevendo a obra, tendo como base apenas suas memórias e alguns poucos bilhetes e cartas deixadas com amigos.

Entre família

Em 1967, João se casou com Marília Mendonça Andrade, com quem teve seu único filho, Daniel Pedro. João também tinha um irmão, Virgínio, que viveu em Presidente Altino até seus últimos dias.

“Eles eram muito diferentes, mas se davam muito bem”, relembra Érica Ferreira, filha de Virgínio e sobrinha do escritor. “Meu tio era uma pessoa que sempre estava presente. A gente se dava bem.”

Atualmente, Érica vive no município vizinho à Osasco, Barueri, com dois irmãos. “Quando meu tio faleceu eu tinha uns 16 anos”, conta a sobrinha, que leu a obra de João Antônio na adolescência. Ela foi criada pela mãe e pela avó do escritor e recorda: “Lembro que muitas coisas que li e tinham realmente acontecido, porque eu via nos livros e perguntava para elas, como os lugares que a gente morou e coisas que eu já tinha ouvido em casa mesmo e que estavam nos livros”, revela.

Como todo ser humano, o tio possuía suas peculiaridades. “Ele era cheio de trejeitos. Dobrava e mordia a língua, ficava na varanda lendo e depois gargalhando sozinho”, relembra a sobrinha. “Também bebia muito café, tinha fama de mão vaca e mulherengo”, brinca.

Nenhum familiar de João mora mais em Presidente Altino. O terreno no qual a família do autor viveu hoje dá lugar para casas de aluguel que pertencem aos sobrinhos.

Abraçado ao meu rancor

A horta, os animais e o “viver espontâneo”, cenário que serviu de pano de fundo e inspiração para as histórias contadas pelo autor, deram lugar às vigas dos prédios de um condomínio residencial em seu topo e, mais abaixo, antenas de transmissão de energia elétrica. A saída de um viaduto antigo divide espaço com o mato que insiste em continuar em ascensão.

A pobreza que João tanto denunciava desceu morro abaixo em Presidente Altino – e há muito tempo. Por anos, dezenas de famílias viveram em barracos de madeira na saída do tal viaduto. O local foi desocupado e os grupos se viram obrigados a buscar novas alternativas nos arredores, em áreas também precárias.

Com a especulação imobiliária, os cortiços de Presidente Altino citados constantemente pelo autor foram aos poucos desaparecendo. Os terrenos onde diversas famílias, em sua maioria nordestinas, viviam, deram lugar a edifícios residenciais e sobrados geminados, que são vendidos por valores que assustam até um morador dos Jardins.

Algo similar aconteceu com os famosos botecos onde trabalhadores das fábricas da região passavam os fins de semana jogando sinuca, uma das maiores paixões de João Antônio. Os que não foram totalmente demolidos tiveram os mais diversos destinos: uns se tornaram padarias, outros lojas e alguns até mesmo igrejas.

Hoje em dia, encontrar um bar com boas mesas de sinuca é mais difícil do que encontrar agulha no palheiro.

Morador desconhecido

Apesar dos inúmeros prêmios e reconhecimento internacional, entre os moradores de Presidente Altino, João Antônio ainda é grande um desconhecido. Representantes da associação de moradores do bairro, a AMAltino, ficaram surpresos ao descobrir que alguém com tamanha importância para a literatura brasileira viveu nas ruas do bairro.

Em uma das escolas da região, a situação é um pouco diferente. Maria de Lourdes Silva, coordenadora do Colégio Presbiteriano, tanto conhece a obra do autor como também sabe que ele viveu em Altino. “Eu trabalhei numa escola no centro de Osasco há alguns anos e uma funcionária que trabalhava lá era parente dele”.

Nas ruas e estabelecimentos do bairro também não há nenhum tipo de menção ao autor.

Apesar disso, há alguns quilômetros do bairro osasquense, na Água Branca, zona oeste de São Paulo, uma travessa leva o nome do autor. Esse andarilho dos becos e muquifos das cidades merecia ao menos isso.