Flávio de Campos, professor de história da FFLCH, critica uso da camisa da seleção pela oposição em 2014 e conta como o futebol passou de estigmatizada como “conversa de boteco” a objeto de estudo respeitado
Por Lázaro Campos
Quem passa pela Marginal Tietê indo para a USP, logo antes da ponte Jânio Quadros, não identifica o campo do Flamengo de Vila Maria atrás do muro. Esse foi o primeiro campo de futebol que o professor de história Flávio de Campos, da FFLCH, conheceu.
Filho de operários italianos, ele explica que a constituição de sua identidade passa pelas lembranças futebolísticas desde a infância até chegar à coordenação do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens) da USP.
Nosso entrevistado também participa dos dossiês que a Revista USP organiza em ocasiões de Copa do Mundo e Jogos Olímpicos. Para ele, o futebol é um ingrediente da cultura sem o qual não se entende por completo a sociedade brasileira.
Longe de preconceitos simplistas de que o futebol é “o ópio do povo”, o JC conversou com Flávio para entender como essa compreensão surgiu, como foi questionada e de que forma passou de tema marginal a objeto consolidado na academia brasileira.
Nosso entrevistado também analisa a relação entre política e futebol, inevitável nesses tempos obscurantistas. Para ele, o campo e a arquibancada são espaços que devem ser disputados politicamente.
Flávio é palmeirense.
Sempre que a Copa vem, volta o discurso de que o futebol é sinônimo de alienação. Onde surgiu essa opinião e por que ainda existe?
Um pesquisador que não levar em consideração o papel do futebol não entende por completo a sociedade brasileira e a sociedade contemporânea. Ele pode não gostar do futebol, mas tem que entender a relevância do futebol, tanto do ponto de vista econômico, quanto do político, das relações sociais e da cultura. No século 19, a esquerda, tanto a socialista como a anarquista, olhava o futebol como alienante. Eles tentavam desencorajar a classe operária de praticar o futebol. A elite também tentava coibir a prática do futebol popular. Ocorre que a classe operária se apropria do futebol, como parte da sua cultura e da sua identidade. Assim, a quantidade de atletas é assombrosa no começo do século 20, apesar das resistências da elite e das vanguardas operárias. Eric Hobsbawn, um dos maiores historiadores do século passado, afirmou que, no século 20, o futebol se tornou a religião laica da classe operária. Em alguns momentos, ele pode ser instrumentalizado como ópio do povo. Mas pode ser também ser elemento transformador, que denuncia desigualdades. Por exemplo: que sensacional que a seleção argentina não tenha jogado em Israel. Estamos vendo todas as denúncias de atos praticados pelo Estado de Israel contra os palestinos. Quando uma seleção de futebol se recusa a jogar contra Israel, isso tem um impacto tremendo e é profundamente importante do ponto de vista da intervenção política.
O movimento da Democracia Corinthiana, com Sócrates, Casagrande e Zenon é um movimento extremamente transformador e uma das mais bonitas histórias do futebol brasileiro. Outro é do Reinaldo, que no gol contra a Suécia em 78, quando comemora com o punho erguido e, logo depois, como ele já me contou, disfarça porque ele lembrou da repreensão que recebeu do Geisel para não fazer o gesto. Quando há faixas de “Marielle presente” ou críticas à Máfia da Merenda do PSDB de São Paulo nas arquibancadas, são intervenções políticas, ou com a torcida do Atlético Paranaense, com máscara do Sérgio Moro, outro exemplo de intervenção política, à direita, conservadora e a favor do golpismo.
O futebol e a arquibancada são espaços de disputas ideológicas. Elas revelam tensões e conflitos. Como cientistas sociais, devemos analisar. Como cidadãos, devemos nos posicionar e ter o compromisso político em relação a isso. Temos que comprar a briga e coibir e enfrentar casos como de manifestações homofóbicas, racistas, machistas e sexistas. É simplismo definir futebol como alienação.
Por muito tempo, houve um preconceito em relação ao estudo do futebol na academia. Como e por que isso mudou?
Fora do Brasil, o futebol já era estudado. Mas nos anos 1970 o Brasil teve uma virada, sobretudo no Rio de Janeiro, com a publicação da dissertação de mestrado Futebol brasileiro: Instituição Zero (1977), de uma mulher, Simoni Guedes. Ela não estava sozinha, mas em um grupo que era influenciado pelo antropólogo Roberto DaMatta. Na década de 80, na USP, os professores José Sebastião Witter e José Carlos Sebe Bom Meihy também iniciam essas pesquisas. Nessa época ainda era um tema marginal, visto com olhar de suspeição sobre a legitimidade dos estudos acadêmicos sobre futebol. Isso passava pela ideia de que aquilo era conversa de boteco. Eu acho que aí tem um preconceito de classe na academia. Se for para estudar Tchaikovsky, relacionado sua formação musical e a relação com o romantismo, pode ter de iniciação científica ao pós-doutorado que todo mundo vai achar legítimo. Mas se for para fazer uma análise da seleção de 1970, isso vai ser visto como tema de boteco. Isso é uma questão de uma universidade brasileira que ainda tem muita dificuldade de se abrir, não só se tratando de cotas e democratização, mas também na maneira de se relacionar com a sociedade na qual está inserida. Apesar disso, pesquisas individuais e coletivas foram feitas. Em 1994, a Revista USP dedicou uma edição ao futebol, com pesquisadores novos e outros mais maduros. Ela abriu um caminho. Em 2010, a Revista História, do Departamento de História da USP, publicou um dossiê sobre futebol. Hoje eu tenho um programa de pós-graduação, História Sociocultural do Futebol. Já organizamos dois simpósios internacionais sobre futebol em parceria com o Museu do Futebol. Um em 2010, outro em 2014, e o terceiro acontece em setembro.
Hoje já temos uma massa crítica de pesquisadores, com profusão de pesquisas em quantidade e qualidade relevantes. Os estudiosos têm formação variada: nas ciências humanas, educação física e psicologia, por exemplo. O mais interessante é que os núcleos e laboratórios de pesquisa já estão disseminados em todos ou quase todos estados do Brasil. É um objeto consolidado na academia, a despeito de um ou outro olhar suspeito.
O que foi pior, 1950 ou o 7×1?
Eu pensaria assim: 1950 e 2014 ou 2×1 e 7×1. Começando pelo placar. Em 1950, no 2×1, há aquilo que alguns chamam de tragédia do Maracanaço. A tragédia é muito mais do ponto de vista da expectativa torcedora. Porque o Uruguai tinha uma excelente equipe que foi subestimada pela euforia que cercou aquela final da Copa. Já o 7×1 me parece ser a maior humilhação que já passamos em Copas. Ele vem também como resultado de uma expectativa exagerada em relação à seleção e uma dificuldade em perceber as qualidades do nosso adversário. Quando os meninos entram em campo e percebem que os alemães não são cintura dura, são habilidosos e, tecnicamente, semelhantes ou até superiores aos atletas brasileiros, arrebenta-se a preparação dos jogadores. A partida foi humilhante porque não foi disputada. Chegou uma hora que os alemães, por piedade, pararam de jogar. Não foi uma partida acirrada como foi em 1950. No segundo tempo, eles visivelmente tiraram o pé e jogaram como se fosse um treino. Para mim, esse parar é mais humilhante que o 7×1 porque é um olhar de condescendência em relação ao futebol brasileiro. Agora, 1950 e 2014: em 1950 temos eleições, o Vargas é eleito, mas não se sustenta por muito tempo e vai se suicidar depois de 4 anos. Em 2014, há um momento de virada da política brasileira diante do esgotamento da estrutura política da Nova República. Isso começa a se sentir nas Jornadas de Julho de 2013. Lá, há uma crítica à lógica dos megaeventos quando se usa uma métrica irônica para avaliar políticas públicas: queremos saúde e educação “padrão FIFA”. Além disso, há um mimetismo gestual, corporal e vocal nas manifestações do que é feito dentro das arquibancadas. Por exemplo “Pula, sai do chão contra o aumento do busão” do Movimento Passe Livre é paródia de “Pula, sai do chão, faz ferver o caldeirão”, cantado nos estádios. Mas aquele canto babaca “sou brasileiro com muito orgulho, com muito amor” é transposto sem adequação. É o que vai alimentar esse patriotismo nacionalista de raiz autoritária que aparece diversas vezes. Na abertura da Copa de 2014, temos um paradoxo. A presidente Dilma é xingada e vaiada por uma torcida verde e amarela de classe média. Quem veste a camisa da CBF-Nike são Aécio Neves e Eduardo Campos. Quem instrumentaliza esse símbolo é a oposição. Depois, o Aécio Neves convoca os eleitores a votarem vestidos com camisas do Brasil. Essa multidão vai continuar nas ruas. A indumentária do movimento golpista é a camisa da CBF-Nike. Mais recentemente, temos esses coxinhas fascistóides comemorando a prisão do Lula com a camisa amarela e depois, na greve dos caminhoneiros, rogando pela intervenção militar. Por isso que 2014 é pior que 1950. O 7×1 é muito menor que todo o retrocesso político que vivemos de 2014 para cá. É uma analogia à grande goleada que os anos de 2014, 2015 e 2016, o momento de maior inflexão negativa da história do nossos país.
É possível que progressistas se sintam mal por torcer pela seleção? E, nessa linha, é possível separar a seleção da CBF e de todas essas outras coisas?
É compreensível o constrangimento em torcer pela seleção. Mas a seleção não é deles, dessa direita reacionária fascista. E a camiseta, apenas de ser CBF-Nike, também não é deles. A seleção se constitui como um símbolo da identidade coletiva do país. É símbolo polissêmico, que muda de acordo com o momento, mas está em disputa. Temos que ocupar o espaço legítimo porque representa o futebol, que é um ingrediente da cultura operária e das camadas subalternizadas. Eu não sei se conseguiria usar a camisa amarela porque fica meio constrangedor. Mas os meninos do Ludens fizeram uma camisa vermelha para os socialistas e pretas para os grupos anarquistas e libertários. Vou torcer para o Brasil, provavelmente com a minha camisa vermelha. Eu tenho a esperança de que essa Copa vai abrir um espaço de ressignificação da camiseta amarela. E não precisa ser a da CBF-Nike, pode ser a da 25 de março. Temos que nos reapropriar da camiseta amarela da mesma forma que fizemos com outros símbolos. Por exemplo, até os comícios da Diretas Já em 1984, a bandeira e o Hino Nacional eram associados à ditadura. Temos que nos reapropriar da camiseta amarela.
Segundo o DataFolha, o desinteresse pela Copa bateu recorde: 53% sem interesse nenhum pelo torneio. Por que isso acontece?
Eu acho que isso vai mudar. A tendência é o Brasil fazer um bom resultado e reverter essa impressão. Acho que o ambiente político de profundo pessimismo com o golpe e as medidas regressivas levam a um desinteresse em relação à seleção. Isso mesmo em um ano eleitoral, em que deveríamos discutir propostas e perspectivas de transformação.
Além disso, essa é uma seleção desenraizada. Os atletas que jogam nesta seleção são pouquíssimo conhecidos pelos torcedores brasileiros. Muito jovens eles já vão embora do país. Quem sabe em que time o Firmino foi revelado no Brasil? Todo mundo vai ter dificuldade de identificar o time de formação. Exceto os mais óbvios como Neymar, do Santos, e Gabriel Jesus, do Palmeiras. O fenômeno é uma ofensiva do capital estrangeiro, seja Europa, China ou Oriente Médio. Se o Vinícius Jr., por exemplo, fosse revelado por um time do Paraná ou da Bahia em vez do Flamengo, só conheceríamos ele quando estivesse jogando no Liverpool [Inglaterra], Bayern de Munique [Alemanha] ou Barcelona [Espanha] e fosse convocado pela Seleção Brasileira. É uma seleção que não vimos ou vimos jogar muito pouco aqui. Quando o Zico saiu, ele já era o Zico. Falcão é o Rei de Roma, mas todo mundo viu ele no Internacional. Hoje eles vão embora precocemente, passam seu desenvolvimento e maturidade e só voltam quando estão prestes a se aposentar. Pegamos o refugo. Temos que abandonar o dogmatismo neoliberal de que isso é lei do mercado. Ficar feliz porque o jogador do seu time brilha no Real Madrid ou no Barcelona é síndrome de colonizado. Eu queria meu jogador brilhando no futebol brasileiro. Só há uma alternativa: intervenção do Estado na economia. Cobrar taxas para transferências internacionais que sejam decrescentes conforme o atleta for mais velho. Assim, a saída do jogador aos 18 anos vai ser inviável. Os clubes vão ganhar menos, mas não vai viver uma bolsa de valores a cada janela de transferência. Vão conseguir se planejar melhor. O futebol praticado no Brasil também vai melhorar.
E como você vê o técnico Tite?
Eu acho que a seleção do Tite já conseguiu se recuperar do 7×1. Porque o comando é muito diferente. O Felipão é a expressão do viés autoritário, aquele técnico que é agressivo e desqualifica o oponente. O Tite é de um viés que me deixa contente. Ele tem preocupação de explicar suas escolhas, é mais educado e respeitoso. Vejo ele valorizando as pessoas a sua volta. E é bom que o tenhamos neste momento.
Mas ele assinou o documento que pedia mudanças na CBF e no futebol brasileiro seis meses antes de aceitar o cargo.
Eu vejo como positivo o fato dele estar lá. A CBF precisa de uma mudança estrutural e espero que possamos contar com o Tite nos movimentos que estão acontecendo. Quando os movimentos de jornalistas, atletas, dirigentes, das mulheres e dos LGBTs no futebol, que já acontecem, se tornarem visíveis à sociedade, espero que ele seja sensível e empreste sua imagem a essas questões. Espero que ele seja o grande técnico a propor mudanças estruturais no futebol brasileiro.
Durante a votação de país-sede para a Copa de 2026, o Coronel Nunes (presidente da CBF) votou na candidatura de Marrocos, quebrando o compromisso de votação na chapa da América do Norte. Como você analisa isso?
Boa parte da cartolagem que chegaram à CBF participaram da ditadura e sobreviveram a ela pelo futebol. O José Maria Marín, por exemplo, foi deputado da Arena. Uma questão fundamental é que não se trata de um nome. Pode ser o Marin [ex-presidente da CBF, preso nos EUA], o Marco Polo Del Nero [ex-presidente da CBF, banido no futebol por suborno e corrupção], ou o Coronel Nunes. Se a estrutura de poder da CBF e a representação de clubes não mudar, essas oligarquias vão se manter. É preciso reestruturar o futebol brasileiro em moldes mais democráticos. Mais participação dos clubes do Brasil, não só da Série A. Isso significa também mais participação dos torcedores e a não criminalização e repressão das torcidas organizadas. Tem que ter diálogo. Temos que ter um jornalismo esportivo mais crítico também. Menos papo de boleiro e mais análise crítica. Nos últimos 13 anos de governos petistas, infelizmente, em vez de um rompimento, houve uma política de acomodação dessa cartolagem tradicional da CBF e do Comitê Olímpico Brasileiro. Precisamos de um projeto de Esporte e Lazer que seja, de fato, transformador. E isso envolve todos agentes do campo esportivo.
Para concluirmos voltando ao nosso quintal: e o futebol na USP?
Às vezes eu faço seminários no Ludens e tenho funcionários assistindo. Que área de pesquisa atrai os funcionários para uma discussão acadêmica? Isso significa que somos capazes, de fato, de termos uma perspectiva inclusiva. Esse diálogo é raro. Muitas vezes, alunos e professores só os cumprimentam quando precisam de algo. A falta de diálogo com esse segmento dá muito esse viés elitista que tem a universidade pública no Brasil. O futebol é o ingrediente que pode derrubar muros. Há um tempo atrás montamos um time dos professores de história para jogar contra os alunos. Certa vez, eu marquei o gol numa vitória por 2×1 e os alunos tiveram que me aguentar por duas semanas com isso. Seguimos as mesmas aulas e papéis, mas a relação era de outro tipo. Porque era suportada por outra prática. Tiivemos uma experiência de minimizar as relações de poder, dominação e discriminação. O time dos professores se chamava Modo de Produção Futebol Clube e o dos alunos, Homens Cordiais, em referência ao livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda.