De desrespeito ao pronome a agressões físicas: este texto é composto por relatos anônimos de quem sofreu transfobia na maior universidade do país
Por Bruna Caetano
Havia apenas uma pessoa na minha frente, um homem branco, magro, com barba, meio calvo e com uma aparência de mais ou menos 30 anos. Esse senhor do nada virou, agressivamente, agarrou com as mãos atrás do meu pescoço e me empurrou para frente com força, dizendo “passa”. Na hora fiquei sem reação. Falei “por que você está me empurrando?” e ele continuou me empurrando, agora pelos meus braços. Denunciei aos funcionários do bandejão e à Guarda Universitária. Ele contou três versões diferentes. Eu apresentei a mesma versão desde o início, que ainda batia com a versão da testemunha ocular. Mesmo assim, só fui ouvida por estar com uma testemunha branca.
Todo ambiente que só é habitado por corpos cisgêneros são hostis para pessoas trans. Muitas pessoas podem falar: “então todos os ambientes são hostis?”. Sim, todos os ambientes são hostis para nós. Não é porque não existem pessoas trans, não é porque há mais pessoas cis no mundo. Nós, pessoas trans, vivemos praticamente um cárcere nas nossas casas. Estamos adoecendo. Saímos na rua sendo violentadas fisicamente, moralmente, eticamente. Nisso, acabamos ficando muito em casa, com medo de sair na rua.
Não vou largar o curso por resistência, por ser um curso que eu gosto, por ver que estar em uma universidade mudou muito minha condição de vida, tanto no capital financeiro quanto ao capital cultural. É engraçado que foram conquistas grandes na minha vida, e muitas vezes as pessoas entram com muito mais. Esse episódio me fez e me faz questionar muito.
Eu nunca sofri nenhum episódio de violência direta, física ou verbal. Mas as micro-agressões são muito comuns. O jeito que algumas pessoas te olham, os comentários sobre você, o desrespeito ao pronome. Às vezes falamos o nosso nome e nos chamam no masculino mesmo sabendo. Pensando no ambiente universitário, as pessoas têm acesso à informação e à internet, que é o maior palco das discussões sobre gênero. Para mim, é bastante inaceitável.
A USP é hostil assim como qualquer ambiente institucional no Brasil, que é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Isso porque não se investe em políticas de combate à discriminação, à transfobia e à inclusão dessas populações. As pessoas travestis são expulsas da escola muito antes de chegar na faculdade por conta de questões que a gente ainda vive se batendo aqui, como o nome social e a adaptação dos banheiros, que estamos discutindo, mas deveríamos ser referência para escolas e instituições.
Eu já sofri episódios de transfobia, mas foram casos onde não houve violência física. Foi gente me olhando torto, tratando estranho e se recusando a usar os pronomes adequados. Teve uma situação em que entrei com uma discussão mais séria com uma pessoa. Foi mais uma situação de uma pessoa negando o embate e a existência de pessoas trans. Quando teve esse caso, em específico, comecei a notar que não estava em um ambiente tão seguro, o que me deixou me sentindo vulnerável. Essa situação eu não falo, só para poucas pessoas, porque me deixou muito desconfortável.
Nós sofremos agressões verbais, morais, éticas, físicas, que impedem a integridade do nosso corpo e que estejamos saudáveis. Nós estamos adoecendo, morrendo. Estamos sob um genocídio da população trans e ninguém fala nada. A transfobia é muito sutil em alguns momentos. É um pronome que a pessoa erra de propósito, é um nome morto que a pessoa faz questão de renascer, é como ela te olha, como se comporta com você, as perguntas que fazem como se você tivesse obrigação de responder. É a liberdade que têm em relação ao seu corpo, em relação à intimidade. Quando isso acontece, não tem como denunciar. Está entre o que é assédio e o que não é. Nessa linha tênue, não temos o que fazer. Mesmo se tivesse, não iam acreditar na gente.
É uma sensação para além do medo. É desconforto, um turbilhão de sentimentos. Também é por isso que não estamos nos espaços. A USP já é um espaço elitista, e é muito hostil para a gente, porque além de ser corpos cisgêneros, são corpos ricos, pessoas de classe média-alta. É sempre uma sensação de alívio encontrar uma pessoa parecida com você, porque é como se fosse outro vírus no sistema. É desesperador estar numa sala com 50 pessoas e ser a única pessoa trans. Você não tem com quem contar. Há pessoas cis aliadas, mas precisamos de pessoas trans aliadas.