A moradia estudantil ainda apresenta problemas estruturais e sociais que se potencializaram durante o isolamento social
Por Mariana Cotrim
Quatro meses se passaram desde o início da quarentena e, ainda, moradores do Crusp vivenciam uma potencialização de problemas que já eram bem conhecidos antes mesmo das medidas tomadas em função da pandemia de Covid-19.
Mariana é uma das pessoas que continuaram no Crusp e relata que quando foi decretado pela USP o início da quarentena, houve uma preocupação geral em relação às condições em que o local se encontrava. Naquela semana, por exemplo, o bloco em que a estudante mora estava sem água. “A gente chegou a participar de assembleia na SAS, chegou a protocolar carta para a SAS, carta para aReitoria informando as condições das cozinhas, da falta de água, que volta e meia ficamos sem”, conta.
No final de março, a Superintendência de Assistência Social (SAS) redigiu o primeiro comunicado à comunidade Cruspiana. Nele, especificava medidas que começariam a ser tomadas sobre alimentação, segurança, saúde, higiene, limpeza, internet e manutenção.
Hoje, os moradores dos alojamentos recebem marmitas descartáveis nos principais horários de refeição e também kits de limpeza, distribuídos mensalmente. Os kits contêm detergente, água sanitária, sabão, sacos de lixo, frascos de álcool em gel e máscaras reutilizáveis, segundo o último comunicado informando sobre a entrega dos materiais, feita no dia 3 de julho. Ainda no mês de março, foram disponibilizados dispensadores de álcool gel em locais estratégicos do Crusp e, hoje, somam-se mais de 70 itens espalhados nos arredores dos prédios.
A tomada de decisão para essas medidas, no entanto, levou tempo para se adequar. Segundo Lucas Cacciaguerra, da gestão da Associação de Moradores do Crusp (AmorCrusp), a demanda em relação aos cuidados dos moradores na pandemia tinha sido feita antes mesmo do isolamento. Para ele, “a resposta institucional foi sendo dada, sempre atrasada, sempre com seus problemas, mas a gente foi demandando e eles foram respondendo”.
Para outros moradores, a pressão da imprensa foi essencial para que essas medidas fossem impostas. No dia 23 de março, o jornal O Globo publicou uma notícia sobre as condições em que as moradias se encontram. Em abril, o The Intercept publicou o relato de uma das mães que vive no Crusp, evidenciando problemas pelos quais essa parte da comunidade discente passa. A notícia resultou em uma nota de esclarecimento por parte da SAS.
Há também problemas no andamento das medidas adotadas. Os dispensers de álcool em gel, por exemplo, estão vazios. Os moradores entrevistados afirmaram que há casos de roubo e depredação desses materiais, assim como a SAS informa em seus comunicados. Segundo Mariana, no entanto, “já deve fazer umas duas, três semanas que os dispensers que têm aqui no prédio estão todos vazios, não tem álcool em gel”.
Vanda, que está passando o período de pandemia em seu apartamento na USP, afirma que, em relação aos dispensers, é preciso também assumir responsabilidades por parte dos moradores, e não só em relação das medidas tomadas agora.
Instalações precárias e faltas na pandemia
Cozinhas e lavanderias no Crusp encontram-se em estado precário há meses. Para Lucas Cacciaguerra, a pandemia amplificou esses problemas e reforça que “respostas institucionais sempre estão sendo dadas de maneira lenta”. Mariana também relata a contradição das medidas: “Eles distribuem o kit de limpeza, mas a gente não tem as lavanderias funcionando, então para eu lavar roupa, a maior parte dos moradores ou lava a roupa na mão ou acaba tendo uma máquina dentro do apartamento”.
Há aproximadamente duas semanas, os apartamentos sofreram falta de água por conta de uma “queda abrupta de pressão”. Alguns dos moradores, inclusive Mariana, pediram para que fossem usados os banheiros do Cepeusp para tomar banho, no entanto, a resposta foi dada três dias depois, quando o problema já havia sido resolvido. “Fica nisso: um jogando para o outro quando muitas vezes a gente tem um problema que precisa ser solucionado com urgência.”
Cintia Silva e Juliana Tutunji, moradoras do Bloco das Mães, contam que, durante este período, foi redigida uma carta pela Frente Universitária de Combate ao Covid-19 para alegar a insalubridade do corredor que, além de estudantes, também abriga crianças. Segundo diz o documento , “a situação é extremamente preocupante do ponto de vista sanitário, epidemiológico, psicológico e público”.
Outra medida que obteve falhas foi a do oferecimento de kits internet (chip de celular ou modem de 20GB por mês). Os moradores entrevistados relatam que essa medida não foi o suficiente para abarcar as atividades do semestre. Elielson Pereira, que recebeu o kit, conseguiu autorização de sua professora e vai até o IAG para conseguir fazer todos seus trabalhos.
Vanda é uma das que não conseguem usar seu modem, e conhece pessoas que passam pelos mesmos problemas. “Agora alguns colegas estão conseguindo substituir. Inclusive, eu vou mandar email pra STI (Superintendência de Tecnologia e Informação) pra conseguir trocar o meu modem porque não adianta nada”.
Rede de apoio X Falta de mediação
Em meio à pandemia, o desentendimento entre moradores também é um desconforto. Cintia e Juliana relatam a dificuldade em se comunicarem com outros moradores. “São diversos tipo de vulnerabilidade, em diversas ordens. “Me parece, pela minha vivência, que a universidade precisa mediar a situação de convivência entre moradores”, opina Juliana.
No início das medidas de isolamento social, o Bloco das Mães sofreu uma infestação de ratos, facilitada pelo fato de haver grande quantidade de móveis nos corredores. Após uma das crianças ir ao hospital com quadro alérgico, houve um embate entre os moradores para que essas pendências fossem resolvidas.
Além de Cintia e Juliana, Vanda também relata pontos que devem ser melhorados entre os vizinhos. Um deles é o fato de a frente de seu apartamento estar sempre suja. “Ontem eu tive que esbravejar porque a pessoa continuava jogando lixo na porta de casa.”
Apesar de vivenciar esses problemas, os moradores sabem que não estão completamente sozinhos. Elielson conta que foi adicionado a um grupo de Whatsapp de seu andar, em que os vizinhos se comunicam e se ajudam. Segundo ele, a medida, foi boa, pois “as pessoas ficaram mais informadas”.
Vanda também se beneficia do apoio de seus colegas e raramente precisa sair para ir ao mercado, porque sempre que necessita de algo consegue alguém para ajudar.
Frente Universitária
Com o intuito de ajudar moradores do Crusp no que diz respeito à sua saúde, foi criada a Frente Universitária de Combate ao Covid-19. A iniciativa foi feita por alunos da área de saúde e com o auxílio do professor José Ricardo Ayres, da Faculdade de Medicina da USP.
Esse projeto surgiu da previsão de que haveria um avanço da doença dentro da moradia estudantil. De acordo com Matheus Nogueira, um dos alunos que compuseram a frente, a ideia seria “identificar possíveis grupos de risco e tomar medidas de prevenção e de formas de conter esse vírus caso ele chegasse dentro do Crusp”.
Além disso, o estudante de Odontologia afirma que, sendo o conjunto residencial um lugar vulnerável, tanto pelo ângulo socioeconômico quanto pelo de saúde mental, por exemplo, o avanço da doença no lugar “poderia ser catastrófico”.
De forma ágil e temendo o pico da infecção, o grupo de alunos fez um levantamento baseado em fichas de anamnese providenciadas pelo Centro de Saúde Escola Butantã. Utilizando todos os cuidados necessários para a prevenção da doença, os seis integrantes da equipe entrevistaram, de porta em porta, todos os moradores do Crusp para obterem um panorama geral do local na pandemia.
Os gráficos que resultaram das entrevistas foram disponibilizados no site Crusp Transparência, para que moradores e alunos pudessem verificá-los. A frente também auxiliou o SAS e a Plataforma Científica Pasteur – USP nas testagens da comunidade cruspiana após problema na identificação da quantidade de pessoas que fariam o teste.
Gustavo Raime, também idealizador da Frente, se diz orgulhoso desse trabalho. Segundo ele, depois da testagem, foi possível identificar casos confirmados que, no levantamento feito por eles, já eram vistos como potenciais indivíduos que podiam apresentar a doença.
A Frente Universitária de Combate ao Covid-19 não foi a única alternativa que deu assistência aos moradores do conjunto residencial da universidade. Há também a ação de centros acadêmicos e outras organizações
O CAAVC, Centro Acadêmico do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional (Fofito), está arrecadando, por meio da plataforma Vakinha, fundos para comprar insumos às mães e crianças que estão vivendo no campus. Além deles, o DCE Livre da USP também contribuiu com doações, assim como alunos de outras faculdades .
“A gente está passando por muitas vulnerabilidades, no entanto a gente também está recebendo muita solidariedade das pessoas”, afirma Lucas Cacciaguerra.
O “paradoxo” da melhor universidade da América Latina
Ao conversar com os moradores do Crusp, ouve-se muito o questionamento sobre como a melhor universidade da América Latina ainda possui problemas graves que necessitam de atenção.
Durante a pandemia, Mariana diz que ficar na moradia em tempos de pandemia deixa uma “áurea de abandono”. “Eu acho que nesse momento as pessoas que estão isoladas em casa já estão passando por uma dificuldade de o ambiente doméstico virar o ambiente de todas as coisas da vida.Isso numa casa normal. Numa casa que não é estruturada para ser uma casa fica um pouco mais complicado.”
Para Vanda, falta acolhimento da USP para tratar melhor os moradores. “A gente tá na mais importante universidade da América Latina, uma das mais importantes do mundo.A universidade não tem esse status apenas pelos prédios, tem o corpo funcional, ela ganhou também pela atuação de alunos e docentes. E ela trata seus alunos de baixa renda desse jeito?”, questiona.
Durante os últimos meses, a SAS tem publicado em seu portal os comunicados que faz à comunidade Crusp. Após a publicação da matéria do The Intercept, foi divulgada uma nota de esclarecimento pontuando que “a USP tem sido atenta e diligente com todos seus alunos, especialmente os residentes no Crusp”. Nela também constam as medidas que estão sendo tomadas, como soluções para os problemas nas cozinhas, orientações para sanar dúvidas sobre questões sanitárias e divulgação de serviços voltados à saúde mental.
Questionado pelo Jornal do Campus, o Gabinete do SAS/USP enviou uma carta de esclarecimento sobre o trabalho que tem feito no conjunto residencial. Segundo eles, “a Superintendência da Assistência Social da USP (SAS), tem conhecimento dos problemas que estão acontecendo dentro do Crusp, assim como tem envidado incansáveis esforços para atender a todos os(as) moradores(as) do Crusp”. A carta também sintetizou a série de medidas tomadas que também constam nos comunicados publicados em seu portal. Por fim, a Superintendência aponta que, com as medidas que têm sido tomadas, “não há razão para argumentar que houve abandono”.