LGBTs contam suas histórias com o esporte universitário

Seis estudantes da USP relatam ao JC como os treinos os proporcionaram acolhimento, distração ou frustrações

 

por Edson Junior

Fotomontagem: Edson Junior/Fotos: Pawel Czerwinski/Unsplash, Sharon McCutcheon/Unsplash e Janthais

 

Gabriel Alegria, estudante de Relações Internacionais na USP, teve uma relação conturbada com os esportes desde pequeno. Diz que nunca se sentiu apto, além de acreditar não ser um meio realmente acolhedor. Por ser pansexual e por conta de seu comportamento e trejeitos, nunca houve um sentimento de pertencimento nem forte interesse de praticar esportes.

Essa realidade afeta muitos indivíduos LGBTQIA+ que enfrentam o preconceito nos espaços esportivos desde suas infâncias, principalmente se tratando de modalidades com histórico de homofobia e machismo. 

Porém, assim como acontece em alguns circuitos profissionais, há diversas modalidades do esporte universitário que vêm se mostrando mais abertas à entrada de todos, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero. 

Com o intuito de entender essas questões, uma enquete para o JC colheu 42 respostas de esportistas LGBTs de 12 unidades diferentes da USP da capital. A partir de um formulário, 40 deles responderam que as equipes nas quais treinavam eram acolhedoras, dois disseram que “nem sempre” e nenhum respondeu que não. 

Dentre eles, mais da metade é bissexual (23), sete são mulheres lésbicas e seis são homens gays. Também configuram quatro pansexuais e dois assexuais. Dos 42, somente dois não são pessoas cis. Os institutos a que os alunos pertencem são EEFE, ECA, IRI, IP, FSP, FO, FMVZ, FFLCH, FE, FEA, FD e FAU.

Número de estudantes por modalidade. Alguns praticam mais de uma. Gráfico: Matheus Alves

 

O acolhimento e pertencimento de LGBTs a esses espaços passa por muitas nuances. Confira algumas delas nas histórias a seguir.

Criando laços a partir do esporte

Gabriel Alegria entrou no mundo do esporte universitário em 2019, quando começou a praticar handebol pela equipe do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. Esse primeiro contato aconteceu a partir de um momento em que estava passando por dificuldades psicológicas, e os treinos já se apresentaram como um período de bem estar na rotina. “Eu fiz um treino meio na espontaneidade e fui curtindo, tanto pelo esporte quanto pela presença de pessoas que eu gostava”, afirma.

A relação continuou de forma tão próspera que, desde 2020, Gabriel é o Diretor de Modalidade (DM) do time, com função de ajudar na coordenação administrativa da equipe e de manter os atletas engajados. 

Mesmo tendo uma visão de que o esporte era um meio com predominância de certos padrões de comportamentos masculinos, ele conta que nunca presenciou ações homofóbicas ou machistas na equipe. “Eu lembro de ficar muito chocado nos meus primeiros jogos, em 2019, porque eu nunca pensei que poderia tomar parte e ser acolhido em um espaço como aquele”, destaca.

Gabriel, na ponta esquerda, junto de sua equipe. Foto: Gabriel Alegria/Arquivo Pessoal

 

Atualmente, Gabriel vê o esporte como algo de forte impacto em momentos de grandes mudanças, como a entrada na faculdade. Para ele, é uma das formas de se manter engajado no ambiente universitário e de criar laços fortes com as pessoas com quem está no dia a dia dos treinos. 

Assim como Gabriel, Viviane Torquato também acredita no poder socializador da prática esportiva. Ela estuda nutrição na Faculdade de Saúde Pública (FSP) e entrou neste ano, durante a pandemia. Mas isso não foi um impeditivo para que ela se integrasse a um time. Ainda que tenha pouco tempo de universidade, ela já faz parte do time de basquete do instituto, participando de treinos online. 

Viviane acredita que os treinos proporcionam um pertencimento. “Ter esse momento na semana de conversar com o time, treinar juntos e de estudar as técnicas de jogo é um ótimo meio de socializar, fazer amizades e descansar a mente”, pontua. Além disso, enquanto bissexual, ela diz que sua sexualidade nunca foi um empecilho para a participação no time e tem a mesma sensação emrelação ao seu instituto de forma geral.

O esporte como essencial para a saúde mental

Matheus Valério se interessou pelo esporte universitário desde a semana de recepção online deste ano, quando entrou na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP. Já nesse período, ele contatou os integrantes das equipes de natação, atletismo e futebol, nas quais foi bem recebido. A habilidade prévia não era um requisito para entrar, somente a vontade de aprender. Ele permaneceu – de maneira remota, por enquanto – no atletismo e na natação, que, mesmo sendo esporte individuais, têm equipes bem enturmadas. 

Porém, o esporte tem um papel muito maior na vida de Matheus. Há anos, ele foi diagnosticado com transtorno de ansiedade, e o esporte foi essencial para a melhora de seu quadro. “Embora tenha recorrido à medicalização e sessões com psicólogos, que foram fundamentais para a melhora do meu quadro, encontrei nos esportes uma forma de aliviar toda a energia acumulada e todo o estresse do dia”, explica.

Já para Felipe Rodriguez, estudante do curso de Educação Física, o time de vôlei foi um dos motivos essenciais para que não trancasse o curso durante a pandemia. Ingressante de 2020, ele é formado em fisioterapia e já precisava lidar com a adaptação para voltar mais uma vez ao ambiente universitário, o que potencializou ainda mais o impacto da quarentena em sua vida. 

Nos treinos online do vôlei da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP, Felipe encontrou um espaço em que os atletas falavam sobre a parte técnica do esporte e conversavam descontraidamente. Esse espaço representou para ele uma forma de desabafar sobre o que vinha acontecendo, falar sobre o curso com veteranos e, principalmente, ver como ele não estava sozinho nesse momento tão difícil.

Por entrar no ano em que a crise da Covid-19 iniciou, ele teve pouco tempo de contato presencial com a universidade. Chegou a ir somente para um treino presencial de sua equipe. Ainda assim, ele pôde perceber que era um momento em que os atletas heterossexuais e gays do time tinham uma relação leve e amigável. 

Logo de cara, ele viu que poderia se expressar como é com o time. “Eu não me senti inibido de falar sobre coisas do meu namorado ou mesmo sobre qualquer tipo de tema relacionado a sexualidade”, comenta.

Felipe jogando vôlei. Foto: Felipe Rodriguez/Arquivo Pessoal

 

E os tais dos e-sports?

Os esportes eletrônicos, ou e-sports, vêm ganhando cada vez mais popularidade e já têm equipes formadas em diversos institutos da USP. Na pandemia, foi uma das únicas modalidades que conseguiu adaptar os campeonatos universitários para o modelo à distância, com cada um jogando em sua casa.

Pamela Silva é estudante de publicidade e propaganda na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e faz parte do time de e-sports do instituto, denominado Lions. Pam, como também é chamado, é uma pessoa não binária, identificando-se pelos pronomes “ele/dele”. Ele sente que sua equipe é um espaço acolhedor e sempre pôde se expressar livremente, mas o respeito à forma como prefere ser chamado foi uma dificuldade que viveu durante sua trajetória no esporte universitário.

Dentro de sua própria equipe, “ainda acontece de forçarem pronomes femininos, mas isso é algo que compete a um ou outro indivíduo, e não ao time como um todo”, aponta. Contudo, houve uma experiência em específico que o deixou ainda mais desconfortável. Durante um jogo de League of Legends, um game online, no campeonato Taça Júpiter, Pam jogava com mais quatro homens pela equipe da Lions. 

Quando o narrador da partida percebeu sua presença, ele disse ao público: “olhem que incrível galera, tem uma garota jogando pela Lions!”. Pam entendeu que a intenção dele era evidenciar como o meio ainda é dominado por homens, mas, como afirma, “o tiro saiu totalmente pela culatra”. 

Ele acredita que, a partir disso até o fim do jogo, passou a ser visto com a ideia de que, por trás de seu personagem no game, havia uma garota. Ele afirma que “meus companheiros de time eram somente, e tão somente, os personagens que jogavam e suas habilidades no jogo. Não faz diferença nenhuma durante o game [o gênero do jogador], e é uma tarja, uma categoria a qual jogadores homens não têm que se submeter”.

Ao fim do jogo, Pam demonstrou sua insatisfação com a situação e pediu que não fosse mais chamado por pronomes femininos. Além disso, ele comenta que ouviu uma pessoa fazer uma crítica no campeonato de League of Legends do Bichusp, competição da USP destinada aos calouros, ao pedir o uso de pronomes neutros por parte dos narradores quando fossem se referir aos jogadores. Para Pam, esse tema ainda é pouco abordado dentro dos torneios.

Na enquete feita para essa reportagem, que contou com 42 respostas, uma das perguntas era sobre a identidade de gênero. Mesmo atingindo apenas uma parcela do público estudantil da USP, que atinge números muito altos, é possível perceber o quanto transexuais e não-binários são pouco representados nesses espaços. 

Além de Pam, somente uma pessoa que respondeu à enquete é não binário. O resto é composto por pessoas cissexuais. Gráfico: Matheus Alves

 

O cuidado com os pronomes não é a única questão que acomete os e-sports. Para Laura*, ainda é um meio machista. Ela é estudante de Relações Internacionais e não se sentiu integrada com a equipe do instituto nos seus primeiros contatos, em 2020. Explica que era a única garota a entrar no time e não havia um cuidado nas falas e comportamentos dos outros integrantes para que ela se sentisse incluída. 

Como ela diz, não era um preconceito no nível de não querer ela ali, mas sim de não saber como se comportar com sua presença. Atualmente, ela já se sente bem incluída, mas diz que ainda é um meio machista, principalmente no circuito profissional, fora da universidade. 

Reprodução de tela de uma partida de League Of Legends. Reprodução de Tela: Laura

 

Ela e mais cinco amigos do curso se juntam para jogar e-sports frequentemente, fora dos treinos oficiais do time do instituto. Laura conta que é um espaço muito acolhedor em que se sente muito à vontade. Ela é a única garota, mas, dentre os seis do grupo, quatro são LGBTs, o que deixa todos ainda mais à vontade. 

A presença de outros LGBTs num espaço é uma forma de acolhimento para os novos que chegam, acredita Laura. Ela percebe que, desde que entrou na faculdade, conheceu muitos LGBTs no seu instituto, o que a fez sentir que  o acolhimento desse grupo em específico não seja uma grande dificuldade no IRI.

“O cenário de e-sports não é fácil, é muito difícil. Então, eu acho que é ainda mais importante sempre deixar claro e fazer questão de demonstrar o quão acolhedor, o quão respeitoso a gente [atletas do IRI] é com todo mundo. Porque isso não vale nem só para a nossa equipe, sabe? Isso vale para todos”, conclui Laura.

 

*Laura é um pseudônimo utilizado para preservar sua identidade, uma vez que não quis se identificar.