Desde quando a casa deixou de ser lar para ser Mundo?

 

por Gabrielle Abreu

Foto: Gabrielle Abreu/JC

 

Antes, era a recompensa de um dia vivido. Viver é bom, mas é cansativo. No giro da maçaneta ela adentrou no universo do sossego e da segurança. Falta entregar aquele relatório que o chefe ficou no pé o dia inteiro para terminar? Aqui não, solo sagrado. Da mesma forma que em templos religiosos sentia que cometia sacrilégio quando ocasionalmente se distraía e seus pensamentos navegavam em temas proibidos na boa moral cristã, no templo sagrado do lar, ela não deixa entrar inquietações da vida adulta. 

Lar é lar desde que o consciente delimite algo no campo da matéria para servir de porto seguro. Às vezes é feito de tijolo, madeira ou pau a pique. Tem lar de dimensões que pegam 400 metros quadrados ou todo o céu. Coisa de alma livre e desprendida. Em um país com uma grave crise habitacional, o lar é o desejo de muita gente. Às vezes, é feito de pele e osso: uma vantagem, já que qualquer lugar é lar enquanto tiver companhia.

Mas voltemos ao tradicional: um espaço delimitado com paredes, teto, porta e janela. Nesse lar, quando se entra, deixa tudo que é bagagem de fora. Sempre foi assim por muitos e muitos anos, desde que o Homo sapiens aprendeu a arte da agricultura e esperou seu trabalho gerar frutos. Com a chegada da Revolução Industrial, fixou-se ainda mais a ideia de que o lar é seu para descansar, mesmo que por pouquíssimas horas ao dia. Retira a vestimenta de robô e desnuda o ser humano. Exausto e humano. 

Coisa recente, o trabalho arranjou um jeito de entrar na casa do pobre operário. Chegou sorrateiramente, até se instalar com mais persistência. De um ponto de vista, é privilégio. De outro, é sobrecarga. No lar dela moram cinco pessoas e um cachorro. Cinco cômodos e três aspectos da vida de cada um. É trabalho, estudo e lazer. “Separo as áreas da vida em metros quadrados ou deixo um pedaço em cada cômodo?”, pensa ela.

Arte: Gabrielle Abreu/Fotomontagem com imagens de Gabrielle Abreu e Sem autoria/Klipartz

 

Na cozinha, ela trabalha e almoça. No quarto, estuda, se exercita e dorme. Na sala, desfruta do lazer em frente à televisão. Para somar, na hora do almoço escapa para a rua e toma 15 minutos de sol para repor a vitamina D perdida. Nos corredores da casa, sempre esbarra em um ombro ou em uma pata, depende do ser.  

Ela trouxe tanta coisa pra casa, que a casa deixou de ser lar. Agora é Mundo. Ela é mero satélite orbitando 300 metros quadrados 24h por dia. Tem uma expressão conhecida que diz que quando uma coisa é muito querida, queremos guardar em um pote. Uma péssima forma de elogiar qualquer coisa, visto que é apenas um reflexo de pura obsessão humana. A expressão nunca fez tanto sentido para quem se encontra, agora, guardado em casa. Ela se apega à ideia de que está tudo bem, a vida é tão querida que prefere guardá-la. 

É um pote, uma caixa, uma casa. Limita movimentos, mas não limita o mais importante: o pensamento. “Quando eu vou sair?” Ela anseia pelo dia que irá girar a maçaneta e respirar como quem redescobre o Mundo do lado de fora.